segunda-feira, 13 de abril de 2009

Porque te ris, idiota?

O acto de acenar com lenços brancos nos estádios de futebol é, em si, um gesto contra-natura em Portugal. Não representa nada, porque não tem passado. Está ligado à tradição tauromáquica espanhola e tem a ver com a indignidade dos toiros e do espectáculo quando este não corresponde à grandeza exigida. Foi adaptado facilmente ao futebol porque é um gesto que, lá, significa alguma coisa.

Cá não significa nada - o que explica que, quando foi adoptado por alguns adeptos do futebol português aquando da moda do futebol espanhol via-Sport TV, os comentadores tenham querido ver ali uma "despedida" dos adeptos aos treinadores. Se há algum significado, aliás, é esse: o de dizer adeus, com lenços brancos, como as mães ou as noivas que se despediam dos soldados para o Ultramar com o lenço que utilizariam também para limpar as lágrimas, geralmente branco, como são os lenços das mulheres.
O que encontro de precedente, no futebol português, é a utilização jocosa do acenar do lenço quando uma equipa rival é despromovida ou batida. Ficou conhecida no meu bairro de nascença, por exemplo, o lençol branco que um grupo de adeptos do Atlético levou para o Estádio do Restelo no jogo em que o Belenenses desceu de divisão, no princípio dos anos 80.

Esta confusão do lenço branco explica, em parte, o sorriso palerma do jovem benfiquista que apareceu na televisão a acená-lo (note-se que ia preparado...) na derrota do Benfica com a Académica. Em parte, nessa parte, o miúdo encavacava-se porque sabia que se empenhava bravamente num gesto que não compreendia realmente de onde vinha.
Na outra parte, envergonhava-se porque mais ninguém à sua volta fazia o mesmo. Era como uma daquelas cenas de filme em que o herói se atira para a frente de batalha empunhando o estandarte apenas para, depois, se virar e ver que o exército tinha ficado todo lá atrás, sem sequer perceber que lhe tinham levado a bandeira.

A esmagadora maioria dos adeptos do Benfica tem razão em não querer despedir-se de Quique Flores, e digo-o apesar de ter a certeza de que não será com Quique Flores que algum dia o Benfica virá a atingir o sucesso que se propõe (sustentado, continuado, indiscutível e orgulhoso). A atingir o sucesso, com Quique, ele será sempre parcial, porque Quique é demasiado científico e pouco emotivo, pouco espontâneo. Não mexe o suficiente com a alma benfiquista para a mobilizar por inteiro e inequivocamente. Nada disto quer dizer que ele não seja um bom treinador para o Benfica. A história do mundo faz-se dos símbolos, é verdade, mas quem a sustenta temporalmente são os obreiros, os homens vulgares que, com disciplina e método, mantêm as suas fundações. Quique não é um Bella Guttmann mas está igualmente longe de ser um idiota como Souness. Quique é uma espécie de Jesualdo, com menos idade e menos manha mas com níveis semelhantes de cinismo e honestidade profissional.

Porque é que Quique não deve ser despedido? Por vários motivos:

- Porque é, precisamente, um trabalhador honesto e comprometido com o seu cargo, entusiasmado, que precisa, pelo contrário, de sentir apoio e motivação por quem tem (esses sim), a obrigação de saber o que é o Benfica e o que o Benfica viveu nos últimos trinta anos para daí tirar lições. Quique não tem de o saber. Quique tem de poder fazer o seu melhor com aquilo que tem, cumprir o seu papel e, então sim, sair.

- Porque o Benfica mostra trabalho. Foi um excelente sinal, para mim, como benfiquista, ver jogadores com problemas físicos nas primeiras semanas de treinos, porque foi sinal de que se estava a carregar na parte física, algo que não acontecia no Benfica há anos. O futebol é setenta por cento físico (porque é que acham que os alemães ganham tantas vezes?). A parte técnica não funciona sem a física, nem a parte mental. O Benfica não sucumbiu fisicamente em nenhum momento da temporada, à excepção das primeiras semanas de competição. Essa é a base de todo o trabalho. Assim como é demonstrativa a qualidade da equipa nas bolas paradas. Falta-lhe um bom rematador, mas em cantos e livres indirectos é forte. Sem eles teria ficado em sétimo e não em terceiro.

- O que falta ao Benfica é solidariedade. Esse é o cimento das equipas. Uma equipa vale o que vale o seu jogo colectivo, e esse só existe com colectivismo. No Benfica tem-se fomentado, ao longo dos anos, o individualismo, o que, quando a coisa corre bem, se transforma em idolatria, mas quando corre mal se torna em egoísmo. Quando as coisas correm mal, no Benfica, porque há uma cultura individualista, a tendência dos jogadores, até dos melhores, é salvarem a própria pele. Fazem-no nas acções em campo e fora dele. Tentam demonstrar que não têm nada a ver com aquilo ou ausentam-se, e assim quebram-se os elos de solidariedade que originariam, mais tarde, o jogo colectivo e o sucesso, traduzido na qualidade de jogo. É por isso que sempre que acontece um insucesso se tem a sensação de que se está a começar tudo do princípio. Ora, não está. Não está porque o princípio deve ser o seguinte: "Ou vivemos todos ou morremos todos, mas ninguém sai do barco". E o que acontece é: "Se o barco for ao fundo os que conseguirem fiquem cá em cima, porque é o que eu vou tentar fazer. Salve-se quem puder." O princípio, os princípios, vêem-se em momentos como este. Sempre que alguém sai do Benfica com uma canga ao pescoço quebra-se mais um elo de solidariedade.

- Entroncando nisto, Quique não deve ser despedido porque os compromissos têm de valer. O compromisso de um dirigente com um treinador tem de valer, assim como o compromisso de um jogador com a equipa tem de valer, e o compromisso de todos com o clube tem de valer.
O insucesso não deve ser tolerado. A receita para o insucesso não deve ser a desistência mas sim a insistência. Se o jogador joga mal tem de jogar melhor. Se o treinador escolhe mal tem de escolher melhor. Não tem de se ir embora. Se o dirigente escolhe mal o treinador tem de trabalhar para o melhorar.
Quando alguém cai tem de se levantar, não vai a rastejar até à porta. Para esses a porta tem de estar fechada, sem condescendência.
Não pode haver, no Benfica, jogadores dispensados nem treinadores dispensados, nem há demissões. No Benfica ninguém se pode demitir ou ser demitido. No Benfica tem de se trabalhar, e se não se sabe aprende-se, não se compra novo. Há 400 anos que Portugal anda vendido por causa disto.

Do Benfica os profissionais só devem sair em final de contrato ou cedidos, com contrapartidas. O que é que se consegue com isso? Duas coisas fundamentais:
- que não haja compromissos de ânimo leve, sobretudo por parte dos dirigentes, cujo único talento para sobreviverem deixa de ser sacudir água do capote (o que levará a que se escolha mais judiciosamente daí para a frente);
- que haja tranquilidade para os profissionais exercerem a sua profissão com o direito e o dever inalienável que é conseguir fazer melhor dia após dia - mesmo que não sejam capazes.
A primeira regra do espírito colectivo é não haver desculpas, apenas soluções, que se encontram no outro, naquele que nos acompanha. Na equipa.

Quique não deve sair porque o sucesso, no Benfica, está a um clique de distância. A grande questão é de que tem de ser um clique genuíno. Não pode ser um erro de um árbitro ou uma manobra de bastidores manhosa. Tem de ser real. Pode ser a entrada de um ou dois jogadores com algum carisma (o que seria o Manchester United de hoje sem Cantona, por exemplo?), pode ser uma alteração na química da equipa, pode ser uma vitória importante, pode até ser sorte, um pouco de sorte que, num determinado momento, dê alento aos jogadores, um sinal de que estão a trabalhar bem e de que mereceram essa sorte. A confiança que temos em nós vem, muitas vezes, de fora, de nos sentirmos protegidos pela sorte. Depois disso a confiança alimenta-se a si própria.

A pobreza de jogo do Benfica, a sua falta de solidez, não resulta da falta de qualidade individual dos jogadores. Resulta do desamparo. Resulta da sensação, por parte de cada jogador (uma sensação que se torna evidente à vista, pela própria linguagem corporal), de que está sozinho no erro e no insucesso. Daí resulta a desmotivação, a falta de entrega, porque se se está sozinho para perder também se está para ganhar, o que não faz sentido para um indivíduo naturalmente colectivista, que pratica um desporto de equipa, em que apenas em equipa se pode ganhar. Se não fosse assim todos os futebolistas seriam tenistas.
Sem confiança no seu par, o jogador hesita em entregar-se completamente, e como o futebol é um jogo de extremos, em que o mínimo de sucesso exige muito comprometimento, falha. Joga mal, a equipa não funciona e perde. Assim recomeça a espiral descendente.

A única forma de reverter uma dinâmica negativa é inverter as polaridades. O objectivo não é a salvação, mas o triunfo. A queda é apenas um passo para o avanço. A virtude está na força, não na fraqueza. Só o orgulho vence a banalidade. Os vencedores não desistem, insistem. O homem é um animal que aprende para não esquecer. É tão simples como isto. O resto é o passar do tempo.

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