sexta-feira, 29 de maio de 2009

Como no campo da bola

A eleição do melhor jogador do mundo de 2009 ficou decidida na final da Liga dos Campeões, quando alguém fez a vontade ao lóbi do Messi, que andava há mais de um ano a trabalhar para isso. Mas, enfim, quando o Messi marca um golo de cabeça na final da Liga dos Campeões é preciso passar do campo da opinião para o da constatação, e constata-se que o que tem de ser tem muita força.

Para que conste, contudo, o Messi, que foi eleito o melhor jogador da final, não esteve sequer entre os três melhores da sua equipa. Se fizessem um inquérito aos futebolistas que estiveram em campo, provavelmente a eleição seria qualquer coisa como isto: em primeiro lugar, Iniesta; em segundo, Xavi; em terceiro, Piqué.

Já em relação ao título de melhor jogador do mundo, haveria uma maneira fácil - ou melhor, impossível, mas apenas pela sua complexidade "técnica", e não pela essência da ideia - de saber quem ele é.
Fazia-se uma reunião entre os proprietários dos trinta clubes mais ricos do mundo para eles dizerem aos seus treinadores que, graças a um apoio de um patrocinador qualquer - um tipo da Coca-Cola, vá lá -, tinham autorização para comprar uma super-estrela, qualquer uma, assim mais ou menos como faz o Florentino Pérez, o primeiro tipo a descobrir que ter um Figo a jogar e ao mesmo tempo a vender camisolas do Real Madrid aos chineses saía de borla.
E os treinadores tinham de ficar convencidos de que iriam ter, mesmo, o jogador que escolhessem. Qualquer jogador do mundo.

Obviamente, os treinadores iriam escolher o jogador em redor do qual pudessem formar a sua equipa, aquele que considerassem o melhor jogador do mundo, de facto o mais valioso, o potencialmente mais importante no jogo, aquele que, por si só, mais colocaria em vantagem a sua equipa, no cômputo geral daquilo que é um jogo de futebol.

No fim, recolhiam-se os votos, e quem tivesse mais ganhava.

Eu sei quem é que escolhia.

A terceira irmã Williams

Acabei de ver a Michelle Brito a ser eliminada em Roland Garros e fiquei convencido de que temos ali uma campeã. Não teremos uma Steffi Graf, nem uma Monica Seles, não temos de certeza uma Kournikova, mas temos uma top-10, o que para mim é algo semelhante a ver, por exemplo, um português a ganhar o triplo-salto olímpico: surreal.

Michelle perdeu porque tinha de perder, porque vem das qualificações e tinha mais jogos em cima que uma adversária que não lhe é inferior e tem uma consistência física superior (porque é mais velha), porque tem um serviço de adolescente num torneio de mulheres feitas, porque está a aprender a competir e porque a outra, afinal, também joga e não é nenhuma azelha.

O que me convenceu não foi a qualidade do jogo da Michelle. Jogar bem jogam todas, e se ela tem 16 anos e tem muita margem física e técnica para melhorar (vai crescer em altura e envergadura, vai ganhar capacidade muscular e resistência, e isso vai permitir-lhe melhorar técnica e mentalmente), há muitas outras adolescentes no circuito - apesar de, se calhar por estarem habituados a ver prodígios como Graf, Seles ou Hingis a ganhar grandes torneios desde os 16 anos, as pessoas pensarem que os prodígios nascem das árvores. Michelle não é um prodígio. Se o fosse já teria idade para estar no top-10 hoje mesmo. É, isso sim, um grande talento. Nunca vai ganhar cinco ou seis Grand Slam, provavelmente, mas pode perfeitamente vir a ganhar um, que é algo que poucas tenistas conseguem.

O que me convenceu foi a personalidade com que mandou à merda os franceses. Assim, simplesmente. À merda.
A outra, que era francesa, jogou sujo, queixou-se de ela dar gritos (só quando estava a perder), apesar de também os dar quando começou a cansar-se. No fim, estendeu a mão à Michelle e levou desprezo. É digno. Os batoteiros, joguem ou não em casa, saibam ou não que o são, são batoteiros. Os franceses, que provavelmente teriam tido outra reacção se tivesse sido ao contrário, assobiaram-na. Ela agradeceu e saíu.

Mandar um francês à merda é sempre um sinal de grande saúde espiritual. Espero, sinceramente, que ela só fique pior com o passar dos anos, e que possa mandar à merda, além dos franceses, os espanhóis (direi mais os castelhanos). Espero muito que haja, finalmente, um português, nem que seja uma miúda sozinha no campo de ténis, que possa andar pelo mundo a mandar toda a gente reles à merda e a receber as devidas honras por isso.

A espécie de arrogância imperial com que alguns povos tratam outros povos, atingindo a audácia de querer impôr os seus vícios e defeitos como virtudes civilizacionais, deve ser mandada à merda. Sobretudo pelos pretos da Europa, que somos nós.

E garanto já que se algum dia vir o rei de Espanha, o primeiro-ministro e toda a alta corja de Espanha a colar-se a um êxito de Portugal como se colaram ao êxito dos catalães, na vitória do Barcelona, viro a mesa.

Isto é já a contar com o futuro Mundial Espanha-Portugal. A sério. Agarrem-me, que eu não sei o que faço.

Estou zangado. Odeio gente canalha que pensa que é mais que os outros e cuja única arte é a da pilhagem.

Grrrrrrrr!!!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Os (noventa e) cinco por cento que faltam

Há uma coisa que me faz bastante confusão no futebol: o começar do princípio.
Quando um treinador sai, por exemplo, como agora com o Quique, e os se jogadores lamentam e dizem que "não se pode andar todos os anos a começar do princípio". A ideia que dá é que o treinador novo chega e vai ensinar um a um como meter o pé à bola, como correr para a frente, como avançar em bloco, como defender o atacante directo, como fazer uma desmarcação, como meter um passe, quando rematar, enfim, dá ideia que aqueles marmanjos, que jogam à bola há vinte anos, de repente são uns debiloidezinhos que têm de aprender outra vez o que têm obrigação de saber.

A maioria dos treinadores pode não gostar nada desta ideia, porque no fundo todos os treinadores têm pena de não poderem, eles próprios, entrar dentro de campo, e acreditam que eles é que são fulcrais no sucesso, mas eles sabem que, numa boa equipa, com bons jogadores, a contribuição de um treinador está nos pormenores, porque noventa e cinco por cento do futebol já lá está, na química da equipa.

Atenção que, ao mais alto nível, nas grandes equipas, em que tudo funciona bem, os pormenores podem valer tudo e acabar por decidir o sucesso. Nesse caso, um treinador realmente é o elemento fulcral porque aporta à equipa o que lhe faltava, aqueles cinco por cento extra. Há vários casos, de entre os quais Guardiola é o último exemplo.
A equipa do Barcelona é, fundamentalmente, a mesma do ano passado e, para todos os efeitos, quase a mesma de 2006, tirando Ronaldinho e Deco. Na altura funcionou, depois gripou, e este ano, mudando de treinador, o Barcelona não "começou do princípio", obviamente. Começou do patamar onde estava. Mudou de treinador, mudando também, com isso, de paradigma, mas mantendo, evidentemente, as bases tácticas e técnicas, e com isso passou de não ganhar nada a ganhar tudo.

O Chelsea, antes de Mourinho, era uma espécie de Arsenal: andava sempre lá em cima mas acabava no degrau de baixo, quer no campeonato quer na Europa. Mourinho, evidentemente, não ensinou ninguém a jogar à bola - ensinou-os a jogar melhor e a ganhar, e só não foi campeão europeu logo no primeiro ano por causa de um golo fantasma.

Há mais tempo, Fabio Capello chegou ao Real Madrid numa altura de profunda crise de resultados. Num único ano o Real sagrou-se campeão europeu, o primeiro de três títulos europeus em poucos anos. Não começou do princípio. Começou de onde estavam. Se tivesse começado do princípio nunca teria sido campeão europeu.

A ideia de começar do princípio que os jogadores do Benfica transmitem dá quase uma ideia de orfandade, de ficarem desamparados no mundo, à mercê de um novo treinador que lhes ensine um bê-a-bá que devia ser, como no Porto ou no Sporting, oitenta ou noventa por cento da capacidade-base da equipa.

Se a mudança de treinador é assim tão dramática para uma equipa só há duas explicações:
- ou a equipa não funciona porque não funciona, porque os jogadores não se entendem, não têm química, ou qualidade, e nesse caso é preciso mudar de jogadores, porque nada cresce de uma equipa que não é uma equipa;
- ou a equipa não funciona porque os jogadores ou os treinadores não trabalharam como deve ser, e estão agora preocupados em "começar do princípio" quando, durante o ano, quando se deviam preocupar em aproveitar o tal "excelente treinador", não fizeram nada por ele.

Se os jogadores trabalharam bem não podem considerar que vão "começar do princípio". As bases do jogo colectivo são exactamente as mesmas para qualquer treinador, seja ele de ataque, de defesa ou lá do que for. Dizer que há um tipo futebol diferente que requer adaptação pode ser verdade, mas é falacioso, porque continua a ser futebol, o que muda são pormenores.

Mudar de treinador, assim como suportar a pressão dos resultados, só pode ser problemático para quem não sabe jogar futebol.


terça-feira, 26 de maio de 2009

O general, o guerrilheiro e o mercenário

Posso estar enganado, mas vejo alguma coisa de especial neste José Eduardo Bettencourt.

Antes de tudo, tendo o perfil completo do betinho, é outro tipo de betinho. É dos betinhos que gostam de fruta. É dos que não sabem falar mas gostam de agir - o que o torna perigoso. O Soares Franco, por exemplo, pensava tanto, tinha tanta estratégia, que não fazia mal a ninguém - e foi por isso que, logo na apresentação da candidatura, levou uma boca valente do Bettencourt, quando ele disse que com ele seria mais importante defender o Sporting do que agradar aos outros. Percebeu-se, claramente, que com Bettencourt a postura do Sporting no Apito Dourado teria sido outra, sem subserviência.

Depois, não tendo, à primeira vista, uma veia política muito apurada, mostrou já dois pormenores que desmentem essa inabilidade.
Antes de mais, todo o processo de candidatura, no qual se resguardou até ao limite, enquanto os outros já dançavam à volta das cadeiras, esperando pelo momento ideal para aparecer como solução óbvia e imbatível. Andava o Franco à espera da vaga de fundo e tinha o Bettencourt a fazer-lhe a cama - ou o caixão.
Depois, o aparente elogio a Pinto da Costa, quando disse que gostava de ter uma longevidade como a dele. Novamente, à primeira vista, parece um tributo. Para mim, o que ele estava a fazer era a avisar a concorrência, incluindo o Pinto da Costa, que não está a pensar em andar por aí de passagem, que quer ficar e ganhar. Se se quiser ir mais longe pode acrescentar-se que, caso Bettencourt tenha a longevidade de Pinto da Costa, quando chegar lá já o outro morreu há vinte anos. A idade joga a seu favor.
Como diz o anúncio, "tu és macaco..."

Finalmente, porque o que podemos esperar do Sporting para a próxima época é, como ele desajeitada mas eficazmente definiu no seu discurso, que "venha para a rua". O que ele realmente queria dizer é que, com ele, o Sporting não vai ter medo de ir para onde se ganham os campeonatos em Portugal: para a lama.
E se Paulo Bento é um guerrilheiro, Bettencourt não o será menos.
O que nos leva a uma dúvida: com Bettencourt como presidente, poderíamos assistir, por exemplo, a uma repetição do caso mais ignominioso que envolveu o Sporting nos últimos anos, provocado, curiosamente pelo seu jogador-marca, o Liedson?

O Liedson é um assassino nato. Tem mais maldade num pé que o resto da equipa toda do Sporting. Por isso é o rei de Alvalade e também por isso o Sporting não ganha, porque não tem instinto letal além do dele.
Por outro lado, o Liedson é um mercenário. É o tipo de mercenário com que se ganham guerras. Eu gostava de ter uma data deles no Benfica. As grandes equipas estão cheias de mercenários como ele. Equipas como o Porto bem podem ter os seus talibãs ano após ano, defendendo a causa e a religião, mas há uma razão para o Porto não conseguir ganhar na Europa como ganha em Portugal: não tem dinheiro para os mercenários. Porque quem os quer ter tem também de se sujeitar à primeira regra da guerra: o mercenário exige ser pago.

Desde que chegou ao Sporting o Liedson ou está em processo de renovação ou está em processo de saída, seja o que for que lhe dê mais dinheiro na altura. Agora, aos 31 anos, quando já ninguém lhe quer pegar, está a fazer render os créditos acumulados e prepara-se para renovar, provavelmente até ao final da carreira. Ainda tem mais dois ou três bons anos de alto nível à frente, pelo tipo de jogador que é e, sobretudo, pelo tipo de jogador em que se conseguirá transformar se perder velocidade. Porque a grande qualidade do Liedson não é nem a técnica nem a capacidade física, apesar de serem ambas muito boas.

O Liedson é, sobretudo, inteligência. Poucas coisas lhe acontecem, dentro ou fora de campo, que ele não controle e antecipe. É o género de futebolista que determina o curso de um encontro porque se encontra à frente dos outros na sua percepção, e por isso às vezes parece que inventa jogadas e golos a partir do nada. É muito semelhante ao Raul, do Real Madrid, por exemplo.

Por isso, quando, no Natal da época de 2004/05, em Guimarães, o Liedson viu um cartão amarelo que o afastava do jogo com o Benfica por jogar a bola com a mão a dois ou três minutos do fim, eu não acreditei na sua inocência.
Que me lembre, foi a única vez que vi o Liedson levar um amarelo por jogar a bola com a mão. É o tipo de asneiras que ele simplesmente não faz, a não ser que queira.

Depois disso foi para o Brasil e por lá ficou, uma parte de férias, outra de licença de paternidade, outra de assistência familiar, outra de greve - porque, já nessa altura, o Liedson queria mais dinheiro.

Com o que o Liedson não contava era com a proverbial arte do desenrascanço lusitano. Numa manobra ao melhor estilo pintodacostiano, e aproveitando o compadrio do presidente do Pampilhosa (que, apanhado no meio daquela caldeirada, se abriu que nem uma gasosa e admitiu que era do Sporting, que o Sporting lhe tinha prometido uma série de ajudas, que queria que o Sporting fosse campeão, etc), os dirigentes do Sporting - José Eduardo Bettencourt tinha saído da SAD seis meses antes por "motivos pessoais" - conseguiram antecipar o jogo da Taça com esse clube, a troco de cachecóis, equipamentos, sandes de courato, enfim, um carrego de benesses, limpando, assim, o cadastro de Liedson e deixando-o apto para defrontar o Benfica três dias depois.

O Liedson ficou encostado às tábuas. Já não tinha desculpa para continuar no Brasil e se persistisse em não regressar (esteve lá uma semana a mais do que devia e só voltou depois do jogo da Taça, dois dias antes do dérbi!) incorreria em problemas sérios. Quando voltou teve de pedir desculpas, o que desbaratou a versão oficial de que se encontrava no Brasil com autorização do clube, e baixar a bolinha.
Os sportinguistas perdoaram-lhe porque ele marcou os dois golos na vitória por 2-1 sobre o Benfica e os dirigentes perdoaram-lhe porque sim, mas perceberam que teriam de lhe dar mais dinheiro.

(Curiosamente, mais tarde nessa época, quando o Veiga fez o arranjinho de passar o jogo com o Estoril para o Algarve, os sportinguistas atiraram-se ao ar, esquecendo convenientemente algumas evidências:
- que o Estoril ganhou, imediatamente, uma receita enorme de bilheteira, que deu para pagar um ou dois meses de orçamento;
- que era muito mais importante para o campeonato o Liedson jogar contra o Benfica do que o Benfica jogar com o Estoril, fosse onde fosse;
- que o Sporting, assim como o Porto ou o Benfica, passaram anos a jogar com várias equipas (Salgueiros, Gil Vicente, por exemplo) em estádios emprestados, por razões económicas, e nessas alturas nunca lhe ocorreu o problema da desvirtuação da verdade desportiva;
- que, no Estoril ou no Algarve, os adeptos do Estoril estariam sempre em imensa minoria ante os do Benfica, porque no Estoril, que é em Lisboa, há muitíssimos mais benfiquistas do que estorilistas genuínos, que devem ser uns duzentos, se tento.
Na verdade, vejo mais facilmente neste caldinho do Veiga uma forma de ganhar dinheiro - pois era accionista maioritário encapotado do Estoril - do que um estratagema para beneficiar o Benfica.)

A grande ironia foi que, na segunda volta, quando o Sporting recebeu o Guimarães, o Liedson voltou a ver um amarelo que acarretava suspensão por pontapear a bola para longe (outro momento anti-Liedson...) e não jogou o encontro que decidiu o campeonato, quando o Luisão abalroou o Ricardo e, sem sequer tocar na bola (espantoso...), marcou o golo da vitória.
É significativo que alguns adeptos mais broncos, daqueles que dizem qualquer disparate com um pleno convencimento de razões, tenham insinuado que ele viu o amarelo para se guardar para a final da Taça UEFA, que seria em Alvalade quatro dias depois.

Refira-se que, utilizando uma lógica vulgarmente utilizada pelos opinadores que é demasiado simplista mas nem por isso totalmente descabida, o Sporting só chega a esse jogo da Luz com um ponto de avanço por causa do Pampilhosa. Sem o Pampilhosa o Liedson não joga com o Benfica em Alvalade, o Sporting perde 0-1 (lá está o simplismo incongruente) e chega à Luz com o título já perdido não com um ponto de avanço mas com cinco de atraso...

Os benfiquistas, provavelmente por serem constantemente massacrados por ele, nunca agradeceram convenientemente ao Liedson. Se esse foi o campeonato do Mantorras não o foi menos do Liedson - que, diga-se, nunca esteve tão perto de ganhar um campeonato nos seus seis anos de Sporting como aí. É verdade, o Liedson nunca foi campeão pelo Sporting. Nunca deu nenhum campeonato ao Sporting. Mas já lhe tirou um.

Isto tudo a propósito do Bettencourt e do Pampilhosa. Para dizer que esse é o tipo de tácticas a que o Sporting não hesitará em recorrer para ser campeão, com Bettencourt e afins: muita classe no penacho mas vulgaridade nos métodos, quando necessária. Esta ainda é a cartilha que o Sporting começou a ler de Pinto da Costa no tempo de Roquette: a de que os fins justificam os meios.
À Liedson.

O que eu pergunto é: sabendo-se que o Porto e o Sporting provavelmente discutirão outra vez o título em 2010, o que fará Pinto da Costa à amizade com o Sporting quando lhe tocar uma destas?
E, já agora, o que dirá Bettencourt se for ao contrário?

domingo, 24 de maio de 2009

Cornos mansos

Ponto prévio: sou Benfica e sou doente, apesar dos últimos anos terem atenuado bastante essa doença. Mas não sou irrealista nem sou injusto, penso, e sei que pelo menos desde o campeonato ganho com os dois golos do César Brito no Porto (pelo menos) o Benfica não mereceu ganhar nenhum, e nunca jogou à campeão.
Se hoje tivesse havido um cortejo em Lisboa por o Benfica ser campeão eu já estava a dormir para o lado porque esta equipa, como a de Trapattoni, como a de Toni (à excepção - e que excepção - do jogo dos 6-3 em Alvalade), jamais marcaria uma época e não deixaria nada de válido para o futuro. É uma equipa fraca, com pouca fibra, escassa personalidade e muito pouco Benfica na sua genética para significar qualquer coisa na história do clube, mesmo que tivesse sido campeã.

Se fosse um cortejo pelo Sporting estaria com uma dor de corno considerável mas encaixaria com o desportivismo possível, porque a equipa do Sporting merecia ser campeã. Aliás, estou plenamente convencido de que a única diferença entre o Porto e o Sporting este ano (além de um orçamento que é quase metade um do outro) foi a bagagem de confiança e estofo que resulta de se ter seis ou sete campeonatos ganhos em dez anos, contra dois, e a experiência de inúmeros jogos europeus de alta pressão. O Porto chega a Alvalade em crise, ainda na primeira volta, e ganha o campeonato, evidenciando a diferença de estaleca entre as duas equipas .
Mas há qualquer coisa de indecente e nauseante nestes festejos do Porto.

É impossível pôr em causa a qualidade da equipa do Porto e o trabalho dos seus jogadores e treinadores. Mas a autêntica campanha eleitoral em que anda Pinto da Costa desde há uma semana, e que se deve prolongar pelo menos durante mais outra depois de ganharem a Taça, é obscena. É uma exibição de impunidade, uma demonstração de força sobre os fracos, a ostentação do "quero, posso e mando, e vou continuar a mandar enquanto eu quiser porque não há ninguém neste país capaz de me impedir". E porque é que isto é assim? Porque se um dirigente do Benfica tivesse sido apanhado com a boca na botija como ele foi não iria passar uma semana em que o assunto ficasse esquecido. Pinto da Costa não o permitiria.

A opinião pública, neste país, resume-se a uma centena de pessoas, se tanto, que são as que emitem opinião nos jornais, televisões e rádios, e que pretendem, de cada vez que o fazem, interpretar o sentir popular e misturá-lo com a sua visão pessoal. No futebol esse universo fica reduzido a mais ou menos vinte pessoas, entre directores, editores e analistas ocasionais. Os programas de opinião popular são, regra geral, exercícios de boçalidade e iliteracia.
Ora, o que os opinadores da comunicação social nos transmitem, com as suas meias-palavras, as suas tibiezas semânticas, as metáforas e figuras de estilo que camuflam o medo de bulir com Pinto da Costa e com o Porto, essa espécie de paneleirismo militante em que ninguém tem a audácia de comprar uma guerra que tem de ser comprada sob o risco de se perder a dignidade para se falar sobre qualquer outro assunto relativo à verdade desportiva ou sequer à regeneração do futebol português, o que eles nos dizem, com a sua complacência, é que não se importam. Que sabem que estão a ser enganados mas que não faz mal, que preferem estar de bem com quem os engana a arranjar uma discussão.

Dada a familiaridade da personagem com alternadeiras e profissionais afins, pode dizer-se que Pinto da Costa, com a exuberância juvenil com que vai fazendo discursos, dizendo piadas e gozando com o triunfo, é a mulher da noite que se prepara para sair de casa, vestida em plumas e mini-saia, à procura de alguém com quem se deitar, e os opinadores, que elogiam muito a toilette (leia-se equipa) da dita mulher são o marido que prefere esconder-se na casa-de-banho, a fazer de conta que está ocupado para depois, quando ela chegar, de manhã, poder perguntar por onde é que ela andou e fingir que está zangado.

É esta espécie de corno manso que forma a opinião pública do futebol português.

Eu já fui jornalista desportivo, já cobri o dia a dia de Benfica e Sporting, em alturas complicadas (Vale e Azevedo...), e sei que é preciso ter coragem para se estar lá, no terreno, todos os dias, e fazer as perguntas que doem - que são as que interessam. Sei porque era um menino a quem mandavam fazer um trabalho de homem, e mesmo os homens feitos muito raramente o conseguem fazer. Quando não é o medo é a política, a diplomacia, as bocas para alimentar em casa, carreiras, o jogo de interesses de quem tem de trabalhar com e não contra, apesar de a obrigação, em muitas ocasiões, ser confrontar e não aguardar.
Mas também sei outra coisa: a pressão para não levantar ondas começa nas chefias. Quem manda nos jornais faz sentir, claramente, a quem está no terreno, que a prioridade não é descobrir alguma coisa, não é revelar ou confrontar, mas sim estar bem com as pessoas. Mesmo as polémicas têm limites que esses supostos líderes da redacção não estão dispostos a ultrapassar, basicamente porque têm medo.

É assim que se explica que nos três jornais desportivos, eventualmente por razões diferentes, o Apito Dourado, e sobretudo as acusações a Pinto da Costa, só tenham tido destaque quando já eram incontornáveis, quando ele foi à polícia e até parecia mal não se fazer primeira página disso quando todo o país não falava de outra coisa. E era capaz de apostar a minha casa em como não houve nenhum director de jornal que tenha dito a um jornalista qualquer coisa como isto: "Vais ter com o Pinto da Costa e vais confrontá-lo. Vais estudar o processo e fazer-lhe as perguntas difíceis e eu vou defender-te aconteça o que acontecer, e se for preciso ainda te arranjamos protecção privada durante uns tempos, mas não vais largar o osso até teres o que é preciso para pôr a nu toda esta podridão."

Para que conste, o melhor que os jornais desportivos conseguiram arranjar foi tornar o Eugénio Queirós, uma espécie de boy for the job preocupado apenas em fazer a apologia do Grande Caudilho do Norte y sus muchachos, na grande sumidade nacional em matéria de Apito Dourado. Se o Pinto da Costa fosse Salazar o Eugénio Queirós era o António Ferro.

O que qualquer jornal desportivo deveria ter feito quando o caso ganhou os contornos históricos que ganhou era criar uma sala de guerra (ou duas, uma em Lisboa e outra o Porto), com alguns elementos seleccionados, blindada, dedicada unicamente a investigar todos os factos do Apito Dourado e, partindo daí, a desfiar a teia do sistema.
Sim, isto é assim tão importante.
O homem que marcou uma era na história do futebol português, uma das suas três principais figuras de sempre, ofereceu prostitutas a árbitros e deu um envelope de dinheiro a um árbitro três dias antes de um jogo que esse árbitro ia apitar. Nunca houve nada de tão importante no futebol em Portugal. Este poderia ser o momento em que o futebol começaria realmente a valer a pena para quem gosta dele.

Em vez disso, o corno manso manda alguém tirar fotografias à mulher na discoteca e continua a fazer de conta que ela foi lá para dançar.

sábado, 23 de maio de 2009

Wooooooooooooooohhhhhh!!!!

Quem não gosta da basquetebol não tem maneira de saber como o seu mundo está consideravelmente mais pobre neste momento. Quem gosta sente-se abençoado - literalmente abençoado - por viver neste tempo, porque o que está a acontecer na NBA, actualmente, é, provavelmente, o período mais fulgurante na sua história, e tenho mesmo dúvidas se não será o melhor momento competitivo (aliando a intensidade à extensão, uma vez que já dura há mais de um mês) na história do desporto. Tento encontrar um paralelo e não consigo. Talvez a única comparação verosímil seja aquela época da Fórmula 1 em que coincidiram o Ayrton Senna e o Alain Prost na McLaren e o Nélson Piquet e o Nigel Mansell na Williams. Quem se lembra sabe do que eu estou a falar. Fora isso não vejo nada.

Descrevê-lo não é impossível, mas daria um livro (e vai dar muitos, concerteza), e é mesmo impossível fazê-lo em meia dúzia de parágrafos, mas é possível pelo menos tentar resumi-lo.
Basicamente, estamos a assistir a uma rota de colisão anunciada entre dois jogadores que no final da sua carreira estarão, pelo menos, entre os oito melhores de sempre, senão mesmo entre os seis melhores, sendo que um, LeBron James, de 26 anos, está a elevar o jogo basquetebol a um nível que permite questionar se não conseguirá, a médio prazo, algo que ninguém achava possível: não se considerar Michael Jordan o melhor desportista americano (pelo menos) de sempre.
O outro, Kobe Bryant, um animal competitivo ao nível de Jordan que está numa missão individual de o superar apesar de nunca o vir a conseguir, viu LeBron roubar-lhe o título de MVP e quer vingar-se nas finais, onde espera encontrar James e conquistar o seu quarto anel de campeão, depois de ter perdido essas mesmas finais no ano passado.

Ao princípio, o playoff deste ano parecia um mero exercício formal em que o único factor de interesse seria precisamente esse mano-a-mano de titãs na final. Na prática, esse duelo tornou-se secundário, e neste momento é impossível, sequer, prever quem estará a final.

Tudo começou com aquela que já é considerada a melhor série de primeira ronda, para alguns mesmo a melhor série da história das eliminatórias, entre os campeões de 2008, Boston Celtics, e os Chicago Bulls. Houve sete jogos, quatro deles com prolongamentos, sendo que um deles teve dois e outro três. Foi a primeira vez que uma série à melhor de sete teve sete prolongamentos. Quando os americanos tentaram resumir os melhores momentos da série não conseguiram. Eram demasiados. Cestos no limite, jogadas impossíveis às dezenas (mesmo, às dezenas...) entre duas das equipas com mais títulos na história, porrada, heróis, vilões, tudo. Quando acabou toda a gente teve a sensação de que acabara de testemunhar um evento inesquecível. Ganharam os Celtics, que jogaram sem o seu melhor elemento, Kevin Garnett, lesionado, mas demonstrando pura fibra de campeão.
Na ronda seguinte, voltaram a jogar sete partidas, dessa vez com os Orlando Magic, estiveram em vantagem por 3-2 mas perderam o jogo seis em Orlando. Para dar uma ideia do que os Magic tinham pela frente no jogo 7, em Boston, basta dizer que em 32 ocasiões em que tinham estado em vantagem de 3-2 numa eliminatória os Celtics tinham ganho... 32, e que nunca antes tinham perdido um jogo 7 em casa. Perderam esse. Pela primeira vez em cinquenta anos. História.

Enquanto isso, LeBron James ia esmagando os adversários, primeiro Detroit e depois Atlanta, por sucessivos 4-0 e com tareões. Bateram o recorde de mais jogos consecutivos de playoff a ganharem por mais de vinte pontos e parecia que o primeiro jogo com os Magic ia ser outro passeio, porque estiveram a ganhar por 23 na primeira parte.
Nesse período assisti ao minuto mais impressionante por um único indivíduo num campo de basquetebol, que me lembre (e já vejo NBA há mais de 20 anos): num contra-ataque o LeBron faz um dos afundanços do ano, uma bola que provavelmente só ele consegue fazer, subindo com a cabeça ao nível do cesto e esmagando a bola a uma mão depois de correr o campo inteiro em máxima velocidade. Quando o pessoal ainda estava todo aos abraços, na defesa, ele vem do lado fraco da defesa, salta e dá um abafo ao Dwight Howard (que é só o jogador mais poderoso da liga neste momento, te mais dez centímetros e ganhou o penúltimo concurso de afundanços) quando este ia afundar a duas mãos, de tal maneira que acabam os dois estendidos no chão. Mas não há falta e o jogo não pára. LeBron chega ligeiramente atrasado ao ataque mas vem solto. Recebe o passe no topo dos três pontos, de frente para o cesto, sobe e marca o triplo. Não me perguntem como, porque não tenho consciência, mas quando aquele minuto começou eu estava sentado na cadeira do computador e quando acabou dei por mim aos pulos, gritando em silêncio no corredor para não acordar os miúdos.
O incrível? Os Magic recuperaram esses 23 pontos na segunda parte e ganharam com um triplo a três segundos do fim. Os Cavaliers só tinham perdido um jogo em casa este ano. Agora perdiam outro, no play-off.

Ontem estiveram com o segundo perdido. Novamente, tiveram uma vantagem de vinte pontos. Novamente os Magic foram lá buscá-los. A um segundo do fim o turco Hedo Turkoglu, talvez o caso mais impressionante de sangue-frio desde o Larry Bird, um jogador que vive para aqueles últimos dez segundos em que um cesto significa a vida ou a morte, marca e põe os Magic à frente. Com uma desvantagem de 0-2 após dois jogos em casa a eliminação dos Cavaliers seria quase uma formalidade. Nunca nenhuma equipa na NBA conseguiu recuperar de uma situação semelhante.

Há um desconto de tempo, reposição na linha lateral. Não pude ver o jogo à noite, tive de gravar e ver de manhã. A minha mulher sentou-se no sofá a vinte segundos do fim, antes dos Magic marcarem o cesto pelo Turkoglu. Eu disse-lhe: "Vai ser o turco, vai marcar e eles vão ganhar, exactamente como ontem". Ela não acreditou. Woowww! Devia ter acreditado.
Depois eu disse-lhe: "Já perderam. Não há tempo. Perderam ontem depois de terem estado a ganhar por vinte, hoje a mesma coisa e vão ser eliminados. O LeBron James vai ser eliminado." Ela acreditou. Não era possível. Não devia ter acreditado.

O LeBron James recebe a bola em corrida atrás da linha dos três pontos, só tem tempo de saltar para trás, em queda, com o Turkoglu, precisamente, em cima dele, praticamente encostado e todo esticado, e lançar. Lá vai ela.

Woooooooooooooooooooohhhhhhhhhhh!!!!

É o cesto da década. Um dos maiores de sempre. Quando ele acabar a sua carreira este vai ser um dos primeiros. Um dos cinco maiores. Ou dez. Não sabemos. É impossível saber. É como diz um cronista americano: com o LeBron James deixámos de saber, desde há um ano, onde é que tudo isto pode vai acabar. Tudo é possível e basta ficarmos contentes por estarmos aqui.

E o melhor, o absolutamente melhor de tudo, é que hoje, no outro lado do país, há uma aberração competitiva da natureza a ver o resumo do jogo que pura e simplesmente não vai aceitar que outro jogador fique, pelo menos, sozinho no topo.

Anteontem o Kobe fez uma das suas exibições de carreira frente aos Denver Nuggets mas não conseguiu ganhar. Está 1-1. Os Nuggets transcenderam-se desde que receberam o Chauncey Billups, um dos quatro jogadores mais mortíferos da NBA na actualidade dentro do último minuto de um jogo - sim, os outros são o Kobe, o LeBron e o Turkoglu, e sim, jogam pelas quatro equipas que ainda estão em competição, e sim, as duas séries estão 1-1, o que quer dizer que cada uma delas ainda pode ter mais cinco jogos, e sim, ainda nem sequer chegámos à final, onde poderá haver e provavelmente haverá mais sete jogos. Sim, sim, sim e sim. Sim. Isto são os playoffs da NBA em 2009. Como diz o slogan, "onde o espantoso acontece"

Os Lakers já tiveram de jogar sete jogos com os Houston Rockets. Nos Nuggets joga Carmelo Anthony, outra superestrela que tem a mesma idade do LeBron. Os dois deveriam protagonizar a grande rivalidade da Liga durante a próxima década, mas parece que toda a gente se esqueceu do Bryant, uma besta de glória, insaciável e irredutível, alguém que só encontra uma palavra para definir o seu estado de espírito relativamente a esta época: "Obsessão". Alguém que admite que, às vezes, tem dificuldade em dormir a pensar no troféu de campeão.

Há muita gente a defender que o Kobe deve estar muito arrependido de ter ido aos Jogos Olímpicos de Pequim no último Verão. É que foi aí, ao verem como ele se levantava às cinco da manhã para fazer treinos diários individuais a que qualquer outro jogador não se submeteria, de livre vontade, sequer às cinco a tarde, que os meninos LeBron e Carmelo (também eles, como Kobe, vindos directamente do secundário para a NBA, sem passarem pela universidade) perceberam que enquanto eles jogavam basquetebol o Kobe Bryant era um competidor profissional, e que, independentemente do talento, só teriam alguma hipótese de sequer competir com ele nos momentos da verdade se se aproximassem, pelo menos, da sua ética de trabalho e da sua ambição, da forma como castiga o corpo e a mente para se aproximar do sucesso.

Há quem defenda que, sem esse exemplo pessoal e directo (LeBron e Carmelo chegaram a levantar-se da cama de madrugada para irem treinar com ele em Pequim), a época da NBA deste ano seria um pró-forma, em que os outros iriam jogar bem até às finais e, aí chegados, Kobe e os Lakers executariam o ritual da morte. Neste momento, pelo contrário, qualquer uma das quatro equipas é um credível e possível campeão, e isto, apesar do equilíbrio que é a principal característica da liga, não acontecia há muitos, mesmo muitos anos.

E há jogadores já eliminados, como Dwayne Wade ou Chris Paul, que, se aqui tivessem chegado, estariam a competir para serem eleitos MVP dos playoffs, e que podem, sem qualquer dúvida, ganhar um prémio de MVP na próxima época. Mas já nem esses sobreviveram à competição. Neste momento, na NBA, para se ganhar, já não basta ser excelente - além de se ser excelente tem de se ser melhor. A dinâmica é tal que já se alimenta a si própria. Os jogos adquiriram vida própria. Hoje jogam Nuggets e Lakers, às duas da manhã. Não consigo imaginar dormir antes do jogo acabar e todo o meu dia vai ser passado à espera, tentando não dar em maluco a olhar para o relógio.

Acreditem que pensei em escrever este texto para falar de futebol. De arbitragem, imaginem. De como a arbitragem é o único ponto frágil da NBA, actualmente, porque os árbitros e os reguladores da liga pura e simplesmente não conseguiram acompanhar a evolução técnica, física e táctica dos jogadores, e por isso erram, às vezes com influência directa nos resultados. E de como, no fundo, no meio de uma explosão de exuberância competitiva permanente que já se prolonga há cinco semanas, ninguém quer saber.

Era para falar de árbitros mas já não quero. Não quero saber. Estão a ver?

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A vida também é um cabeleireiro

O Collina está em Portugal para ganhar umas massas a tentar explicar aos nossos gestores como liderar - o que é curioso, porque o trabalho de um árbitro é iminentemente individual e não implica grande necessidade de liderança. Se vem falar de como gerir crises, já faz mais sentido, uma vez que o trabalho do árbitro é, sobretudo, tentar levar até ao fim o processo de agressão mútua que é um jogo de futebol.

Sim, eu também saltei, durante uns tempos, para a carruagem do Collina, onde entrava toda a gente que dizia que ele era o melhor árbitro do mundo. Até perceber que ele não era o melhor do mundo - era apenas o mais fácil de reconhecer.

O Collina foi um árbitro muito bom. Tinha um sentido do jogo que os árbitros nórdicos, por exemplo, não têm, porque sabem as regras todas e fazem-nas cumprir mas não entendem muito bem o futebol e por isso seguem a letra da lei mas não o seu espírito. Fazia-se respeitar pelos jogadores porque não se colocava a um nível superior, e dessa forma, misturando uma dose de autoridade intuitiva, os seus erros (que não eram poucos e nem sempre de somenos importância) eram relativamente bem tolerados por eles.

O que fez dele o "melhor árbitro do mundo", no entanto, não foi ser bom: foi ser careca. Sem a careca o Collina seria apenas mais um bom árbitro. Foi a careca que lhe deu notoriedade mundial. Collina foi o primeiro árbitro pop, por causa da sua imagem, e só pôde ser o "melhor do mundo" porque as pessoas o conheciam, o que não se passava com nenhum outro árbitro. Dizer que o Collina é o melhor do mundo é como dizer que a Madonna é a melhor cantora do mundo. Não é. É a que vende mais discos e é a melhor comunicadora. A cantar safa-se.

O Collina, porque foi o primeiro árbitro careca de nível mundial, tornou-se reconhecível. Até a minha mulher, que de futebol não pesca nada, sabia quem era o Collina antes de um jogo começar. "Este é que é aquele árbitro muito bom, não é?" E eu: "É."
Bom, não era só a careca. Também era os olhos esbugalhados e os braços compridos. Mas sobretudo os olhos esbugalhados.

Collina pertence ao Planeta Surreal. O Planeta Surreal é o sítio de onde vêm as coisas que não existem mas deviam existir, e com as quais as pessoas simpatizam porque lhes permitem sentir que não estão fechadas como um hamster numa caixa de sapatos sem furos para respirar. O Planeta Surreal é o plano perceptivo onde a ficção supera a realidade.
Não é suposto existir um árbitro completamente careca, extravagante, exuberante, de olhos esbugalhados e ainda por cima que sabe apitar. É surreal. Quando ele aparece, é nosso amigo. O Collina é como o Maradona (outro extra-terrestre, um gordinho de um metro e sessenta e pernas tortas que jogava à bola enquanto os outros tentavam não tropeçar): pode não ser o melhor, mas é o maior. "Collina, és o maior, pá!"

Isto da realidade, da surrealidade e da percepção que temos dela - aquilo a que chamamos de imagem - tem muito de coincidente e parece mesmo que se rege pelo código do acaso. Os momentos que a pautam são aqueles em que os símbolos, as imagens ou os destinos se cruzam.
Neste domingo o Benfica foi jogar a Braga e ganhar por 3-1, sem saber bem como (sabe-se que teve a sorte do jogo, o que para esta equipa é fundamental e geralmente chega), e o Quique arranjou maneira de se fazer expulsar já nos descontos.

Primeiro pensei que tinha sido para não ter de ir ao Estádio da Luz no último jogo, uma espécie de "Ai é assim, não presto" Então passem bem!". Depois, nas conferências de imprensa, ficou a ideia de que tinha sido para não ter de cumprimentar o Jesus. Foi o que o Jesus disse. O Quique disse mal do Jesus. Sim, talvez tenha sido por isso.

O Jesus é assim: é do povo. O Quique é dos jornais, das televisões e das rádios. Fala bem e certinho, e até é espanhol. O Jesus é mais do pontapé na virilha. Vai tudo a eito nos treinos e fala como se estivesse à mesa do café na Madragoa - apesar de ter nascido da Amadora, mas enfim, ninguém é perfeito.
Pelo menos essa é a imagem que os jornais nos dão. Quando dizem, por exemplo, que o Rui Costa não o queria por questões de imagem. O que se quer dizer é que o Rui Costa não quer o Jesus porque ele é rafeiro e o Benfica é para cães de raça. O Rui Costa também vem da Amadora, note-se.

Atenção, porque o Jesus pertence ao Planeta Surreal.
Não é suposto um castiço com pinta de fadista e uma cabeleira ruiva, que nunca deu um pontapé decente numa bola de futebol, ir a Barcelona aprender com o Cruyff quando o Cruyff era o melhor treinador do mundo e o Barcelona a melhor equipa do mundo, voltar, andar a treinar equipas de segunda divisão ou da primeira baixa e chegar lá acima. Aqui há uns anos correu a história de que o Jesus, quando ainda estava no Amora, ou no Setúbal, tinha aberto um negócio de linhas telefónicas eróticas. Não sei se é verdade ou não, mas o simples facto de a história ser verosímil define a pessoa. Não seria nada de anormal.
Eu sempre gostei do Jesus, e achei muito mal que ele tivesse contratado um assessor de comunicação. Gosto do produto genuíno. Do "hádem", do "vaião para a frente", do "subem" e dos motocardes. Para ser igual aos outros não quero, aprendizes de Queirozes é o que não falta por aí.

Não é suposto o Jesus treinar o Benfica, sobretudo porque as pessoas têm uma imagem do Benfica que não é real - olham para uma instituição transcendental quando, na verdade, o Benfica é um clube de bairro que conquistou o mundo precisamente por o ser, por ser povo nobre, e não essa nobreza populista que foi para lá comer a carne e cuspir o osso.
Ter o Jesus a treinar o Benfica é potencialmente assustador, quer pela positiva quer pela negativa, porque, de uma maneira bizarra, faz sentido.
Faz sentido ter uma personagem incongruente a treinar uma equipa perdida de um clube incongruente. Bate a bota com a perdigota. É mais bater a perdigota com a bota. Quando tudo o resto falha, sem que percebas porquê, arrisca. Tenta fazer o contrário. Deixa as coisas acontecer. Experimenta. Não és tu que mandas, é o destino.
Caramba, Rui, em caso de dúvida, e já que vais mesmo despedir o espanhol, olha para o cabelo! Existirá no mundo algum cabelo mais messiânico do que a juba branca do Jesus, que ainda por cima se chama Jesus e mastiga a pastilha elástica de boca aberta? Isto é ou não é bom demais para ser verdade?! Já imaginaram o Jorge Jesus de barba, no banco do Benfica, por exemplo? Há alguma coisa que invoque mais a Arca de Noé?

No Benfica, há dois caminhos possíveis para Jesus: ou acaba a mandar caralhadas aos jornalistas numa conferência de imprensa ou se torna numa lenda, a do fadista da Brandoa que arrancou o Benfica do fundo do poço. Qualquer coisa que fique pelo meio não é minimamente aceitável.

Este domingo, aliás, foi um muito bom dia para mim, no sentido do Planeta Surreal. Vi a primeira página do Expresso com o primo do Sócrates empoleirado em cima de uns postes vermelhos, em Shaolin, a tentar mostrar às pessoas que não tinha fugido, que tinha mesmo ido aprender kung-fu com os budas. Foi um dos momentos altos do meu ano, uma espécie de prenda de aniversário antecipada. Fiquei extremamente satisfeito por ver que o meu país ainda consegue sair da caixa de sapatos desta maneira - e também me divertiu, confesso, imaginar o rapaz, com o cabelo de betinho louro rapado (mas com uma fatiota janota, cheia de cores garridas, ao contrário dos trapos dos chinocas pobrezinhos, porque até na miséria é preciso manter as distências), a levar bordoadas na tromba dos monges, sem se poder vir embora enquanto não forem para a gaveta as falcatruas do primo mais velho, que afinal mal o conhece.

Mas o que é mais espantoso é que, no mesmo dia, houve outro momento que superou esse. Se o primeiro me fez rir o segundo deixou-me boquiaberto a olhar para a televisão. Era o Figo, com uma cabeleira azul e preta à Serafim Saudade (era para ser à Maradona, mas os italianos não sabem que, na verdade, é à Serafim Saudade) a anunciar que ia deixar de jogar futebol.

Foi um daqueles momentos inesquecíveis vindos em serviço expresso do Planeta Surreal. O Figo, com a careta mal-encarada do costume, a barba de estivador ao fim do dia, o típico olhar complicado de quem tem de pensar cinco vezes antes de responder a uma pergunta para não dar bacoradas e a dizer que, um dia, sim, quem sabe, talvez pudesse vir a ser presidente da Federação, mas com aquela expressão que gritava "Quem é que pôs esta ideia na cabeça destes tipos?! E agora como é que eu me safo desta?".

O Figo, o exemplo acabado da seriedade, do profissionalismo, da austeridade futebolística, o Grande Génio Cinzento que nunca saiu da linha de montagem que o transformou de miúdo esforçado em melhor futebolista do mundo, o homem que ignorou a maior guerra psicológica do futebol saindo de Barcelona para o Real Madrid, passando por cima dela como o operário que vai para a fábrica e tem de fazer pelo menos quinhentos e cinquenta parafusos antes do almoço, tinha acabado de decidir, no último domingo da sua carreira como jogador de futebol, que ia pôr uma cabeleira maluca.

Sim, foi um bom domingo. Obrigado por tudo, Figo, mas sobretudo muito obrigado pelo último dia.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Peladinho

Assim à maneira de um twit:

Vi o Rui Costa no jogo de andebol do Benfica com o Sporting. Vi-o a vibrar com a vitória no prolongamento e não vi lá mais ninguém. Acham que é pelo Rui Costa gostar de andebol ou por os outros não ligarem patavina ao Benfica?

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Li no Correio da Manhã que o Vieira e o Rui Costa já nem se falam. Tenho o hábito de acreditar no que os jornais generalistas dizem sobre futebol - talvez porque no Apito Dourado, quando os desportivos começaram a falar do assunto, já toda a gente tinha ido a tribunal, de outra maneira talvez hoje ainda ninguém soubesse que o Pinto da Costa tinha encomendado prostitutas para o Paixão.
Fiquei com a esperança de que o Rui Costa mandasse o Vieira à merda durante o Verão e anunciasse a sua própria candidatura à presidência.
Não tem dinheiro? Ainda bem! É ele e mais seis milhões.

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Houve uma coisa que ainda não percebi no caso do Pepe: se ele quisesse mesmo meter o rapaz a dormir não lhe teria conseguido acertar como deve ser pelo menos um pontapé? Ele estava doido, claro que sim, e parecia um anormal, é verdade, foi bem castigado, mas se ele tivesse realmente intenção de aleijar o outro tinha-lhe dado dois biqueiros na cabeça e o outro só abria os olhos nos hospital. O pessoal da bola faz política de tudo e mais alguma coisa. Qualquer dia há onze advogados de cada lado e o jogo decide-se sem ninguém ter de dar um pontapé na bola.

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O director de desporto da TVE foi despedido por causa da bronca do hino. Segundo a versão oficial por não passar o hino em directo. Tenho dúvidas. Aquilo não foi uma decisão do momento. E depois, passar o hino censurado e em diferido, não bate a bota com a perdigota. Acredito mais que tenha sido despedido por não ter conseguido tornar a coisa convincente. Atrasar o reinício do directo um ou dois minutos depois do jogo começar, por exemplo. Dessa forma seria mais fácil dizer que tinha realmente havido problemas técnicos. Agora só haver problemas durante o hino... É tudo demasiado estúpido para ser linear.

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O Álvaro Pereira (!), do Cluj (!!) diz que se o Benfica o quer tem de o ir buscar. Se o Álvaro Pereira soubesse o que é o Benfica e quem é o Álvaro Pereira já estaria à porta do Estádio da Luz, de malas feitas.

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Li qualquer coisa sobre o Porto ter feito 250 milhões de euros em vendas de jogadores desde o tempo do Mourinho e mais confirmei que, quando estiverem dois anos sem ir à Liga dos Campeões, vêm por aí abaixo aos rebolões, porque não conseguem arrumar o passivo.
Há uns tempos vinha um artigo no Jogo (por coincidência propriedade do Joaquim Oliveira), escrito pelo director-qualquer-coisa, que explicava que o valor do retorno publicitário e de receitas de marketing entre Porto e Benfica era praticamente igual, ao contrário do que seria a ideia corrente de que o valor de mercado do Benfica é muito superior ao do Porto.
Deixava para o público a conclusão, para não tornar a coisa demasiado óbvia: se o Benfica vale o mesmo que o Porto não faz sentido receber mais pelos direitos televisivos em 2012. É, novamente, a grande questão estratégica da próxima década a ser jogada.
Só houve uma coisa de que o jornalista se esqueceu: o Porto está no melhor momento desportivo da sua história, e o Benfica no pior. Traduzindo, o melhor Porto de sempre tem o mesmo valor publicitário que o pior Benfica de sempre. Como é que isto significa que os dois clubes valem a mesma coisa, sabendo que as circunstâncias mudam, às vezes, de um ano para o outro, quanto mais de uma década para a outra, alguém me explica?

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O verdadeiro especial

Passaram há dias 35 anos desde o 25 de Abril de 1974 e o único projecto que resultou plenamente, em Portugal, neste período, foi o Futebol Clube do Porto. A democracia tornou-se numa mamocracia que, quando o leite secar, forçará a mudança de regime político, as pessoas, apesar de haver mais quem saiba ler, escrevem pior e não se entendem, têm aviões e carros para viajar para onde quiserem mas não têm dinheiro para isso e dessa forma pedem emprestado a quem o inventa, e na hora em que for preciso pagar ninguém vai receber porque os tribunais terão, pura e simplesmente, deixado de funcionar, e a polícia já não se distinguirá dos ladrões. É, enfim, um país em construção, aceite pelos seus pedreiros livres e engenheiros contratados como um entre tantos outros, iguais na decadência. Nada de anormal, portanto.

O Porto (clube), pelo contrário, funciona. É a única coisa que funciona em Portugal. É, na leitura vulgar, um projecto de sucesso. Mas só o é porque não há projecto. Nunca houve projecto. Não é do Porto, nem é do país, não é por uma qualquer fatalidade: é, porque é. O projecto não existe, aqui nem em lado nenhum. Quando alguém fala em projectos, fala, na verdade, em vontades. Um projecto, uma construção normativa em que são tomadas acções específicas tendo em vista objectivos específicos previamente definidos, através de um processo linear, nunca resultou, e nunca resultará. Não existe.

O que existe são pessoas. As pessoas criam um projecto. As pessoas determinam um projecto, no seu sucesso ou insucesso. O projecto são as pessoas. As pessoas encontram-se, ou mobilizam-se, têm vontades comuns, actuam, e as coisas começam a acontecer. Quando as pessoas mudam, as acções alteram-se, o que era suposto ser um projecto diverge, às vezes para melhor, outras para a dissolução. Seja como for, o suposto projecto nunca existiu, porque um projecto, na verdadeira acepção do termo, não muda - ele é, por natureza, soberano, e tudo deve ser enquadrável nele. Um projecto, por definição, não se adapta, são as pessoas que se adaptam a ele. Na prática, contudo, é o contrário que permite a continuação do "projecto".

O projecto do Porto tem dois nomes: José Maria Pedroto e Jorge Nuno Pinto da Costa. Quando Pinto da Costa, então ainda chefe do Departamento de Futebol, percebeu que Pedroto era o homem que poderia fazer com que o seu clube ganhasse mais vezes, aliou-se a ele. Não havia, nessa altura, qualquer projecto de afirmação do Norte. Isso foi uma consequência da aliança, e se é verdade que as vitórias do Porto constituem uma afirmação de identidade da cidade também o é que ela não foi a motivação da dupla. A motivação era ganhar. Pedroto admitiu, um dia, que se tivesse ido para outro clube não teria empunhado a bandeira da região, e que se o fizera foi porque percebeu que ela os ajudaria a alcançar os seus objectivos.
Insinuar que Pinto da Costa imaginava o trajecto do clube nos 30 anos seguintes e que o actual sucesso estava planeado desde o início é tão absurdo como admitir que, ao inventar a máquina a vapor, James Watt já antevia a descoberta da energia nuclear. A Revolução Industrial mudou o mundo, mas não foi projecto algum: foi apenas uma sucessão de pessoas a dar azo às suas ideias, às vezes as mais elementares.
O Porto não tem qualquer projecto. O seu sucesso não foi engenhosamente desenhado para representar uma cidade e muito menos uma região, ainda que consiga juntar o útil (a mobilização dos portistas, sobretudo portuenses) ao agradável (o orgulho local). O Porto, como disse um jogador na festa do tetracampeonato, alimenta-se de títulos. Esse é o seu único projecto: arranjar maneiras de continuar a ganhar. Como? Alimentando-se de pessoas e de coincidências.

O meu objectivo aqui não é falar do Porto, é falar do "projecto". Do que faz o sucesso de um "projecto".
Um "projecto" nasce da ambição de uma pessoa, e fortifica-se quando mais pessoas se juntam a ela. Um "projecto" é, acima de tudo, uma rede de relações humanas. Os melhores "projectos" nascem de factores aleatórios. No futebol, por exemplo, pode ser uma união de dirigentes, como pode ser o encontro feliz de alguns jogadores que se entendem em campo ou até a empatia entre uma personalidade e o público.

No Benfica houve apenas um momento em que o "projecto" de Luís Filipe Vieira funcionou: quando, a meio de uma temporada mais uma vez encaminhada para o desastre, com a equipa treinada por Trapatoni a jogar menos que nada e os empates a sucederem-se a empates, apareceu Mantorras, um jogador de efeito instantâneo nos adeptos, a marcar dois ou três golos em momentos-chave. Muito mais que o campeonato de Veiga, de Trapatoni ou do apito do Paraty, aquele foi o campeonato do Mantorras. Só o futebol permite uma história assim.

É sobre este tipo de afinidades que se constrói um projecto. No sentido inverso, é menosprezando este tipo de afinidades que os projectos ruem. Os projectos cimentam-se valorizando as mais-valias naturais, os acasos, se se quiser, aproveitando o melhor que há nas pessoas e o melhor que o mundo traz.

Desvalorizar o factor aleatório a bem de um projecto é enfraquecê-lo. Se um projecto não é capaz de aceitar que precisa de um angolano coxo para funcionar, mesmo que ele lhe dê algo que só ele pode dar, então o projecto não presta, e não serve para nada, porque não está preparado para ser especial. Se alguém dissesse que o pescador Paulinho Santos era, em potência, um centro-campista com capacidade para se tornar indiscutível na Selecção Nacional de futebol, seria considerado louco, mas a conjugação de Paulinho Santos ao Futebol Clube do Porto tornou-o num ícone.
Aproveitando o melhor que há nas pessoas, o projecto, agulhando o seu curso ao sabor dos tempos, mantém-se. Para o fazer, contudo, tem de haver princípios.

Para um projecto funcionar têm de funcionar as coisas que fazem as relações humanas funcionar. Tem de haver lealdade, palavra, honra e, sobretudo, compromisso, na vitória e na derrota. A máxima ausência de egoísmo determina a maior probabilidade de sucesso de um projecto, porque esse sucesso se baseia no melhor que a pessoa tem para dar e não no melhor que a pessoa sentir que tem a receber. Para uma pessoa egoísta os únicos projectos que têm valor são os individuais - e isso não está errado, é assim mesmo. Para um projecto colectivo funcionar as pessoas têm de ser altruístas.

O projecto do Porto é, acima de tudo, uma pessoa, que se chama Pinto da Costa e que tem vindo a aproveitar, desde há trinta anos, o melhor que as pessoas lhe trazem, a bem de uma causa maior, que é o Porto-clube, e que ele ama acima de si próprio. Só isto. É uma pessoa, mais outras pessoas. Tudo o resto é consequência da integridade humana.

Provavelmente os benfiquistas estão tão afogados em mágoas e inveja que só conseguem pensar em desculpas e álibis, e não percebem que entender isto, plenamente, é o primeiro passo para, por um lado, iniciar o seu próprio "projecto" e começar a aniquilar o "projecto" do Porto (que, alimentando-se de vitórias, pode, logicamente, morrer de fome antes de morrer de velhice). Também é provável que, por esses motivos, não consigam ver o que isto significa.

É que, neste momento, no futebol português, só há uma pessoa verdadeiramente especial além de Pinto da Costa. Alguém em quem se encontra o altruísmo, o espírito de missão e a qualidade humana que definem, só por si, a viabilidade de qualquer tipo de projecto. Alguém que não utiliza o nome por vaidade, que não utiliza o poder na busca da glória pessoal e que não precisa do projecto a não ser pela total necessidade que o sucesso do projecto implica para a sua felicidade pessoal. Essa pessoa é Rui Costa e a sua situação é tão especial que Rui Costa está exactamente no lugar em que devia estar, no momento em que devia estar.

Um evento assim é tão raro que as pessoas não o conseguem perceber senão a posteriori. Para os observadores de antanho, Pinto da Costa era um arrivista, rebelde e desrespeitoso do statu quo. Hoje, para as mesmas pessoas, a meio de um percurso que só não contemplou uma guerra civil ou o assassinato (até ver...), é um messias.
Para os observadores de agora, Rui Costa é um bom rapaz, com boas intenções, não mais do que isso, e de boas intenções está o cemitério cheio. Arrisco, no entanto, e no momento em que Rui Costa conheceu o seu primeiro falhanço enquanto dirigente do Benfica, dizer que no futuro outros analistas irão classificá-lo como o salvador do Benfica, e uma das cinco maiores figuras na história do futebol português, pelo que a sua acção contribuiu para a transformação do mesmo. Porque toda a história de Rui Costa é demasiado perfeita para fracassar. Admito, até, um cenário em duas fases, em que Rui Costa sai do Benfica em desencanto para voltar, alguns anos depois, e concretizar os seus sonhos. Porque há coisas de que simplesmente não faz sentido desistir. Seria como desistir de nós próprios - impossível.

Para os mais fundamentalistas (no pior sentido, daqueles que levam a lei à letra sem a tentarem sequer interpretar) será pecado dizer que Rui Costa é maior do que o Benfica. Mas é exactamente isso. Rui Costa é maior que o Benfica. Como Pinto da Costa é maior do que o Porto. Porque os clubes, os "projectos", são engrandecidos pelas pessoas, e o Porto seria, sem Pinto da Costa, muito menor do que aquilo que é com ele, assim como o Benfica só faz sentido, enquanto "projecto", se conseguir abarcar esse evento especial que a história lhe trouxe e que se chama Rui Costa.

Um adepto que se torna jogador, que se torna profissional, que se torna campeão, que sacrifica a carreira a bem do clube, que sacrifica outra carreira para voltar a vestir a camisola e fazer-se seu dirigente, que se torna bandeira lançada sobre uma fogueira para a apagar, que se esquece de si próprio para fazer aquilo que sente que tem de fazer, é algo de tão perfeito que o próprio cinismo nos obriga a duvidar dessa versão quase utópica e a procurar adversativas. A verdade, no entanto, é tão simples como aparece à realidade: Rui Costa é a pessoa mais valiosa que passou pelo Benfica, se calhar, desde a sua origem, representa a essência do benfiquismo, e o Benfica, enquanto conjunto de pessoas, é inferior ao benfiquismo desta pessoa.
Num "projecto" tem de haver pessoas inquestionáveis, que, só por si, o representem, e sem as quais o "projecto" não exista. Porque os projectos são as pessoas. O Benfica só será maior se crescer em redor de Rui Costa. Rui Costa tem de ser incondicional, tem de estar acima de qualquer suspeita, não acima de crítica mas sempre fora de alcance dos franco-atiradores. Porque não há dúvida que Rui Costa se coloca, a ele próprio, abaixo do Benfica, e que se sentir que não é capaz de fazer do Benfica maior ele mesmo sairá do clube, para o servir melhor. Mas tem de ser quando ele entender, e se entender.

O que me assusta, realmente, como benfiquista, é pensar que as vistas turvas dos benfiquistas não vão além de um Quique qualquer, ou de meia-dúzia delas, e que ao ver uma árvore morta não consigam ver o seu messias, sentado do outro lado, encostado a ela, olhando para a floresta. Sem ninguém ao lado.

domingo, 10 de maio de 2009

Uma bola política

Há uns anos, quando trabalhei na Bola (em A Bola...), escrevi uma parte substancial de uma publicação em fascículos sobre a história dos grandes clubes de futebol do mundo. Calhou-me, por exemplo, praticamente toda, senão mesmo toda, a secção espanhola: Real Madrid, Barcelona, Atlético de Bilbau, Atlético de Madrid, Real Sociedad e Valência, se não me falha a memória.
Já passou algum tempo, mas fiquei relativamente bem familiarizado com o futebol espanhol - o que significa que fiquei também mais conhecedor da política espanhola, porque é impossível dissociar um do outro, sobretudo num país onde a política se faz a partir de uma matriz regional.

Talvez nem toda a gente saiba que Espanha é uma invenção recente. O próprio nome, Espanha, só surge já no século XVII, antes disso era Leão e Castela e Aragão. A designação Hispânia vinha de um tempo anterior aos romanos e dizia respeito a toda a península, as Espanhas. Arrogar-se reinvindicar o nome de toda a Ibéria sob a sua bandeira, esquecendo o reino "hispânico" independente de Portugal, foi apenas mais uma tentativa de, politicamente, reclamar uma autoridade natural sobre a península, incluindo sobre este país a ocidente, o único que, hoje, se mantém liberto da manta imperialista de Castela - a nação que, menos tendo de identificativo entre todas as que existem na Ibéria, mais poder acumulou graças a um talento inato para a política e a diplomacia. A causa federalista é e sempre será a mais importante de Espanha/Castela. É a única que realmente tem porque não sabe fazer mais nada.

Euzkadi (País Basco) e a Catalunha não tiveram a mesma sorte, ou o mesmo mérito, de Portugal - e sim, eu disse sorte. Provavelmente porque são mais ricos. As duas regiões são as mais proficientes de Espanha, devido sobretudo à actividade industrial e comercial.
A Catalunha é, desde sempre, um território híbrido, encravado entre a Europa Central, sobretudo França e Itália, e Espanha, cujos governantes sempre a cobiçaram. Tem uma identidade cultural muito mais forte do que Castela, por exemplo.
O País Basco não é nada de nada. É um corpo estranho na península, um resquício de um povo do Norte europeu que por aqui se manteve e participou na Reconquista, continuando, contudo, de tal forma isolado que o seu idioma, perfeitamente alieno, sobreviveu até aos nossos dias. A sua existência, por si só, é uma aberração histórica, e muito mais o é a sua anexação por um Estado com o qual tem escassas afinidades.

No princípio do século XX Euzkadi e a Catalunha foram dois dos principais centros dos movimentos socialistas, republicanos e anarquistas de Espanha, e por isso também foram das regiões mais castigadas durante a Guerra Civil espanhola, vendo nela enterrarem-se, até hoje, as pretensões de independência.
Nessa altura o Athletic, de Bilbau, e o Futbol Club Barcelona, fundado pelo suíço Juan Gamper, já existiam, e podiam mesmo ser consideradas as duas maiores potências do futebol espanhol. Grande parte das Taças de Espanha conquistadas por ambos, sobretudo as do Athletic (que já ganhou 23), foi conquistada nesse período pré-Franco.

Durante a ditadura fascista o F. C. Barcelona foi um dos grandes bastiões da resistência ao regime, e uma ameaça de tal forma persistente à política nacionalista de Madrid que todos os métodos, até a prisão e assassinato dos seus dirigentes ou o fogo posto à sua sede, se tornaram aceitáveis para esbater a sua vitalidade. O Governo central chegou, a certa altura, a nomear um presidente para o clube, com o objectivo principal de o tornar um veículo de propaganda favorável. Esse dirigente haveria de virar a casaca, e tornar-se um dos mais acérrimos defensores do barcelonismo e da autonomia catalã.

O caso de Di Stefano, que por si só determinou uma alteração de forças que subsiste até hoje, é paradigmático. O Barcelona teve contrato assinado com o jogador e com o seu clube na Colômbia, o Millionarios, onde jogava por estar futebolisticamente exilado da Argentina natal. Aí jogara pelo River Plate, que ainda detinha direitos sobre ele. O Real Madrid, protegido pelo regime, meteu-se ao barulho e arranjou maneira de Di Stefano assinar outro acordo e de o apresentar com a sua camisola. A Federação Espanhola viria a determinar que Di Stefano jogasse duas épocas pelo Real e as duas seguintes pelo Barcelona. Primeiro, o Barcelona aceitou, mas depois rejeitou o acordo, por orgulho ou, noutra versão, por pressões do Governo central. O Real Madrid ganharia as primeiro cinco Taças dos Campeões Europeus graças a Di Stefano, que até há alguns dias ainda era o melhor marcador da sua história. O Barcelona venceria a sua primeira quarenta anos depois.

Enquanto o Barcelona sempre foi o clube do cosmopolitismo, fiel à cidade com que se confunde, o Athletic, que sofreu ainda mais com a subjugação cultural e social de Euzkadi, é o oposto. No antagonismo com Espanha, contudo, são iguais.
O Athletic (que Franco obrigou a mudar de nome para Atletico de Bilbao por não querer nomes estrangeiros na Espanha unificada) mantém uma política anacrónica e orgulhosa de apenas jogar com futebolistas bascos ou com afinidade cultural ao país basco, mesmo num tempo em que as equipas podem colocar a jogar o número de estrangeiros que quiserem. São os próprios sócios quem o exige, na sua maioria.

A final da Taça do Rei jogada ontem em Valência, entre Barcelona e Athletic, ficará marcada como um dos grandes momentos políticos na história comtemporânea de Espanha, e certamente será invocada como nota de memória caso venha a acontecer uma segregação do Estado espanhol no futuro.
Quando tocou o hino, antes do início do jogo, uma grande parte dos adeptos no estádio assobiou-o de tal maneira que quase o tornou inaudível, mesmo com o volume mais elevado no sistema sonoro do estádio. Para que não fiquem dúvidas sobre o significado desse momento, e do federalismo subjacente a todos os orgãos estatais, a TVE, que transmitiu em directo a partida, interrompeu a transmissão poucos segundos após o início do hino, quando se percebeu o efeito do enorme coro de assobios. Transmiti-lo-ia durante o intervalo, mas censurado, manipulando o som de modo a passar imagens dos jogadores e alguns adeptos pró-espanhóis com um ruído muito mais baixo, como se os assobios tivessem sido insignificantes e de uma minoria. As expressões graves dos jogadores, contudo, reflectiam bem o que se passava. Para cúmulo a TVE disse que não tinha podido transmitir a cerimónia do hino em directo "por problemas técnicos lamentáveis".

O Barça ganhou 4-1 e deu festival, mas isso foi normal e secundário.

Falo disto porque o Benfica vai ter eleições em Outubro. Vão colidir, muito provavelmente, com as campanhas para as legislativas e/ou autárquicas, e o povo não vai deixar dúvidas sobre qual lhe interessa mais, sobretudo se aparecerem, como vão aparecer, vários candidatos
Não me surpreendia, por exemplo, que o Veiga começasse a aparecer nos jornais, lá para o Verão, a contar espingardas, dependendo muito de quem será o próximo treinador.

Mais ou menos ao mesmo tempo, no Porto, Pinto da Costa vai envolver-se a fundo na campanha do PS para as autárquicas, em apoio a Elisa Ferreira, uma dragona de ouro, a candidata à presidência, contra o arqui-inimigo Rui Rio, que o mandou ir beber água ao Douro assim que chegou à Câmara e foi, nos últimos vinte anos, o único verdadeiro foco de resistência ao seu poder.

Isto quer dizer uma coisa: já faltou mais para o habitual raspanete de Pacheco Pereira, com o seu ar tantalizado, de quem se sente mentalmente massacrado de tanto esperar por que as pessoas o entendam e venham à razão, sobre a importância absolutamente desproporcionada e irracional que se dá ao futebol em Portugal e à consequente completa banalização da vida pública. A indignação de Pacheco Pereira - que actualmente é mais abnegada, dando ele a entender que já desistiu de esperar que as pessoas comecem a pensar - vai atingir um volume inédito porque o Abrupto considerará que, se noutros tempos até se compreendia que as pessoas não sentissem motivadas para pensar em política, desta vez, com a maior crise económica em cem anos e tanta gente em desespero, pensar mais nas eleições do Benfica que na da República é uma pura e incomportável alienação de massas.

A arrogância de Pacheco Pereira em relação ao futebol não é injustificada. É normal que, quem não entende muito bem o futebol, acabe por ou o menosprezar ou o sobrevalorizar, por pensar que ou ele é pouco importante ou é o mais importante.
Se Pacheco Pereira alguma vez tivesse ponderado mais sobre o futebol e não negasse à partida uma ciência que não conhece perceberia porque é que não tem razão quando se revolta contra a promiscuidade entre futebol e política.
É porque, como argumentarei na altura própria (que deve ser lá para o fim do Verão), o que Pacheco Pereira entende por política é, na verdade, economia. O que ele entende por economia é, na verdade, costura. E o que ele entende por futebol é, na verdade, política. O bom futebol, pelo menos.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A pulga e o cavalo

Gosto muito de ver o Messi jogar à bola. Compará-lo com o Maradona é um disparate. Com 16 anos o Maradona já tinha mais carisma do que o Messi alguma vez conseguirá ter, e por isso, mais que pela técnica, é que Maradona foi o melhor jogador do futebol moderno - porque seria impossível a Maradona, mesmo com dez quilos a mais e um par de pernas a menos, passar ao lado de uma meia-final da Liga dos Campeões como Messi passou. Não seria possível. Maradona obrigava o jogo a encontrá-lo, Messi tentou aparecer. Nem sequer é parecido, por mais voltas que a pulga dê com a bola. E não me venham com tretas de que "no último minuto apareceu o Messi a oferecer o golo a Iniesta": o Messi recebeu a bola na sua posição, atraíu o dois-contra-um e encontrou o Iniesta solto, não foi nada de extraordinário, qualquer avançado com o mínimo de categoria teria feito o mesmo.

O Ronaldo, por exemplo, faz isso pelo menos dez vezes por jogo, porque desde pelo menos a parte final da época passada os treinadores adversários deixaram-se de lirismos e abandonaram totalmente a ideia de o defenderem homem-a-homem. Basta ver um jogo do United com o mínimo de atenção para perceber porque é que ele está a ter uma temporada menos fulgurante, já depois da lesão: a estratégia é tentar que ele receba a bola o mais próximo possível da linha (que é o melhor defensor, porque por ali a bola nunca passa), meter o defesa a tapar o corredor vertical e o médio logo ao lado, de maneira a não lhe dar espaço para sair do drible para dentro. Se os defesas não vacilarem, só pode jogar para o lado ou para trás. Por isso as cavalgadas do Ronaldo da linha para a baliza praticamente acabaram e ele passou a época a adaptar-se a essa (inevitável) mudança de marcação.
Vai marcar menos quinze golos que o ano passado, mas seria interessante (não tenho tempo...) ver o saldo de golos e vitórias da equipa, com ele em campo, nas duas épocas, comparativamente. Quase que apostaria que não só a equipa não tem pior diferencial de golos como não perdeu mais vezes. E porquê? Porque o Ronaldo, como jogador multidimensional que é, conseguiu adaptar-se.
Como? Soltando mais a bola (ainda não o suficiente), abrindo espaços e encontrando novas formas de marcar golos e ser perigoso.

E esta é, para já, a grande diferença entre Cristiano Ronaldo e Messi, e aquela que faz com que, para mim, a discussão sobre quem é o melhor só faça sentido para quem gosta mais de jornais que de futebol: nesta fase decisiva da época Ronaldo está a demonstrar, mais uma vez, que o seu futebol tem várias dimensões, enquanto o de Messi, por enquanto, só tem uma - brilhante, é certo, mas única.

Messi é insuperável na finta e muito bom no último passe. Ninguém lhe tira a bola e encontra quase sempre o melhor avançado para marcar. Fá-lo com uma técnica impressionante, tanto que não se possa dizer que seja totalmente descabido dizer que é o melhor futebolista do mundo. Mas é só o que ele sabe fazer, e, como se viu frente ao Chelsea, não há avançados que não possam ser marcados. Nos dois jogos mais importantes do ano, Messi deve ter sido o jogador do Barcelona que menos tocou na bola a seguir ao guarda-redes. O que Ronaldo passou o ano a fazer (aprender a jogar sobremarcado) Messi vai agora começar a aprender, e é preciso ver se consegue, se tem realmente futebol para isso. Porque Ronaldo já mostrou que tem.

Na final da Liga dos Campeões do ano passado, Ronaldo marcou o golo do United, de cabeça, no centro da área. Há quem dê mais importância ao penálti falhado, esquecendo-se de que se ele não tivesse marcado aquele golo o jogo nem sequer teria chegado aos penáltis.
À eliminatória com o Porto, muito mais difícil que a do Arsenal, resolveu-a com um remate a mais de trinta metros da baliza, num dos golos do ano. Se o Messi algum dia tentar um remate daqueles ou tem uma trombose ou a bola nem sequer chega ao guarda-redes.
Com o Arsenal, outro golo, de livre, portentoso, com uma técnica de remate que anda a aperfeiçoar há um ano e que finalmente parece começar a dar resultados, tornando-o um jogador ainda mais temível, porque nas bolas paradas não pode ser defendido em cima. Se acertar, marca e ponto final.
Nos cantos é o jogador mais procurado, e marca frequentemente.
Ronaldo faz o que os realmente grandes jogadores fazem: adaptam o seu jogo ao jogo que têm de jogar. Ele nunca mais vai deixar de ter pelos menos dois jogadores em cima, por isso vai fazer o que fez o Figo: quando perder velocidade e ganhar experiência, vai tornar-se um passador exímio. É garantido. Porque é o que eles fazem.

As pessoas que utilizam o argumento dos golos para o desvalorizarem nem sequer percebem como esse argumento vale, na verdade, pelo oposto. Dizem que marcar muitos golos não significa ser o melhor. Mas esquecem-se que esse é um argumento que faz sentido, e com razão de ser, em relação a um ponta-de-lança. Sim, de facto, reduzir o valor de um jogador ao número de golos que marca é falacioso, porque o ponta-de-lança joga mais perto da baliza e está lá para isso, por ser um especialista, mesmo que não consiga fazer um passe ou recuperar uma bola pode marcar quarenta golos. Mas o que o Ronaldo consegue é (além de passar, fintar, ganhar bolas de cabeça, defender e tudo o resto), não sendo ponta-de-lança, ser melhor ponta-de-lança que todos os verdadeiros pontas-de-lança e ao mesmo tempo melhor extremo que os outros extremos!

É bom que as pessoas tenham noção de uma coisa: não houve nunca, pelo menos no futebol moderno, um jogador tão completo a nível ofensivo como o Cristano Ronaldo. Nunca! Ofensivamente, Ronaldo consegue fazer, literalmente, tudo, consegue fazê-lo depressa, consegue fazê-lo colectivamente, e além de tudo isso ainda é o jogador que mais golos marca, e de todas as formas - dentro ou fora da área, em força ou em jeito, de bola corrida ou bola parada, com o pé ou com a cabeça.
Fisicamente é um espanto, perfeito, em velocidade, resistência, potência, impulsão. Mentalmente é um guerreiro. É ambicioso, vaidoso e egocêntrico. É um trabalhador nato, como Figo, mas ainda com mais talento natural. Não consegue fugir ao jogo e, com a maturidade a crescer, o jogo cada vez irá mais ter com ele.

Messi e Ronaldo não são incomparáveis - são ambos excelentes futebolistas, jogadores geniais e os dois mais espectaculares do Mundo, provavelmente. Mas comparar Messi com Ronaldo é como comparar uma pulga a um cavalo.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

"Joga bonito!"

Jaime Pacheco é um dos maiores talentos desperdiçados do futebol português nos últimos vinte anos. Talvez seja uma vítima, talvez seja culpado, mas se Jaime Pacheco não é, hoje, o principal treinador da velha guarda (sendo que a velha guarda é aquela do treinador formado no balneário e no campo, não nas faculdades), é porque, a certo ponto, desistiu.

Os mais novos não podem lembrar-se dos primeiros tempos de treinador de Jaime Pacheco, ainda como jogador-treinador, no Paços de Ferreira, e dificilmente terão visto jogar a equipa do Guimarães treinada por ele em 1997, mas era uma autêntica máquina de futebol, muito mais do que o Guimarães de Cajuda, por exemplo, ou o Braga de Jesus. O Guimarães, que acabou em terceiro nesse campeonato, salvo erro, mas andou muito tempo a morder os outros, jogava bem, jogava forte e jogava bonito.
Talvez a história do futebol português moderno fosse outra se tivesse sido esse Guimarães de Jaime Pacheco a ser campeão e não o Boavista de Jaime Pacheco de 2001. Porque as duas equipas, apesar de treinadas pelo mesmo homem e tendo jogadores de valor semelhante, eram a antítese uma da outra. A diferença entre ambas foi que, entre uma e a outra, o treinador desistiu de jogar futebol. E que, apesar disso, foi campeão. A conjugação desses dois factores condicionou, até hoje, a qualidade futebolística de todas as equipas do campeonato português, à excepção do Porto e do Sporting, que têm uma escola própria. Essa vitória legitimou a estratégia do pontapé para a frente e da táctica da porrada para quem julga não ter meios para "jogar bem" e prefere "jogar para o resultado" - como se, de facto, as duas coisas fossem incompatíveis, quando é precisamente o contrário.

Talvez por ter perdido quando devia ter ganho, talvez por ter percebido que, sem a ajuda dos árbitros e da imprensa, a única forma de competir era deixando de lado a qualidade de jogo, talvez por ter chegado a um clube com uma cultura mafiosa, a verdade é que, em apenas dois anos, Jaime Pacheco se transformou de um treinador de ataque, capaz de pôr as suas equipas a jogar futebol, num treinador destrutivo, cuja filosofia de jogo (que até hoje se mantém) consiste em ganhar todos os duelos defensivos (incluindo-se aí fazer faltas uma vez que ganhar o duelo defensivo significa deixar passar apenas ou o adversário ou a bola, mas nunca os dois), destruir jogo, chegar ao ataque rapidamente e rematar depressa, para poder voltar à defesa, onde pode massacrar fisicamente o adversário, sem escrúpulos em recorrer a expedientes anti-desportivos se for caso disso. É o jogo negativo no seu esplendor. Não choca chamá-lo de anti-jogo.

É um tipo de jogo que, para resultar, tem de ser suportado por alguns requisitos prévios:
- precisa de ter a complacência dos árbitros, algo que nunca faltou no Boavista, presidido pelo filho do presidente da Liga, que usava esse cargo para escolher e corromper os árbitros e as suas classificações;
- precisa de ter um clube com uma cultura desportiva preparada para ele, o que não é o caso do Belenenses, por exemplo, onde Jorge Jesus deixou uma equipa feita para jogar futebol e onde os dirigentes de terceira categoria não sabem o que querem e como o querem, só sabem que querem alguma coisa porque, segundo eles, têm direito, historicamente adquirido, a tudo receber;
- precisa de ter uma equipa de suporte médico que permita ao seu número 10, por exemplo (na altura foi o Sanchez), ficar com um nível de cafeína no organismo semelhante ao de 49 bicas tomadas imediatamente antes do jogo, apesar de ele garantir que só bebeu uma Coca-Cola - 49, porque 50, legalmente, já é doping.
Sim, por incrível que pareça é verdade: para uma equipa conseguir superar fisicamente a outra durante 90 minutos ao nível do que fazia o Boavista era imprescindível este tipo de façanha médica. Não era do treino.

Tudo isto explica porque é que, para as dezenas de equipas pequenas que desde 2001 não tiveram presidentes da Liga, nutricionistas milagrosos ou uma total falta de vergonha, jogar "à Jaime Pacheco" tem resultado, quase invariavelmente, em fracasso.

No entanto, insiste-se. E porquê? Por um motivo ainda mais pernicioso: porque os portugueses se convenceram, por causa de alguma "vitórias morais", que para ganhar é preciso jogar mal.

Isto só acontece porque não se percebe a diferença entre jogar bem e jogar bonito. As pessoas vêm Ronaldo e Messi a driblar adversários, a dar toques de calcanhar e a fazer simulações sem sarem do mesmo sítio, e aceitam que é esse "jogo bonito" (uma invenção dos brasileiros, que podem fazer essas coisas todas sem perder a bola porque defendem à espera dela na sua grande área) que faz deles grandes jogadores. Como, geralmente, as fintas e toques de Ronaldo e Messi resultam no avanço da equipa, torna-se mais fácil confundir o jogo bom com o jogo bonito.
No Benfica, por exemplo, diz-se que o Di Maria joga bem porque faz muitas fintas. Só que, com o Di Maria a bola nunca chega à baliza. O "jogo bonito" transforma-se em "jogo mau".
Não há grande segredos: em qualquer desporto colectivo o ataque mais eficaz baseia-se no passe e no deslocamento dos jogadores. Quanto mais tempo um jogador tem a bola mais vulnerável se torna à marcação defensiva e, em mil jogadas de ataque, mil vezes uma bola passada chega mais rapidamente ao objectivo do que uma bola transportada em corrida.

O bom jogo é o jogo colectivo e o jogo rápido. Os alemães, por exemplo, desconhecem o jogo bonito. Na Alemanha ninguém finta. Mas toda a gente sabe fazer um cruzamento. Na Itália também ninguém finta, só os estrangeiros. Na Inglaterra, idem, ainda que sejam tecnicamente mais fracos, quer ofensiva quer defensivamente, e por isso não conseguem ter uma selecção vitoriosa, ao contrário dos outros dois.
Tem de ser visto como um sinal que o melhor jogador brasileiro dos últimos anos (à excepção de Ronaldinho, um extra-terrestre que conseguia jogar bem e bonito mas só quando saía a horas da discoteca) seja um finalizador puro, Kaká, cuja principal qualidade é o remate em corrida.

Nem sempre jogar bem resulta em vitória. A selecção de Portugal, por exemplo, perdeu o apuramento para o Mundial no seu melhor jogo, em Alvalade, com a Dinamarca. Logo se fizeram ouvir as vozes dos especialistas, dizendo que era preciso um estilo mais "pragmático" - ou seja, tendo menos a bola e batendo mais. Uma perfeita estupidez. O que era preciso era jogar melhor - defender melhor. Não era jogar pior.
Quando o Benfica fez algumas jogadas bem construídas frente à Académica e perdeu logo se ouviu que era preferível jogar feio e ganhar. Como se as duas coisas tivesse a ver uma com a outra. Burrice. O que era preciso era jogar melhor. Passar melhor, insistir, rematar melhor. E mesmo assim podia-se perder. Para quê insistir, então? Porque, como é comprovável em qualquer equipa ou selecção de sucesso continuado, jogar bem é o método mais eficaz de ganhar. Jogar bem não é fintar para o lado. Jogar bem é ser objectivo, executar bem, actuar colectivamente e jogar em velocidade e resistência. É possível jogar defensivamente e jogar bem. Jogar à defesa não é ser negativo. Ser negativo é fazer anti-jogo - fazer faltas a mais, queimar tempo, despachar a bola sem qualquer intenção ofensiva. Há muitas equipas inglesas que jogam defensivamente e não fazem anti-jogo. O público recompensa-as, comparecendo aos jogos. É claro que preferem um futebol atacante, mas aceitam um futebol defensivo, desde que seja honesto.
O mais interessante é que mesmo as equipas que apenas tentam jogar bem, sem terem jogadores para isso, acabam por adquirir vantagem em relação aos outros.

Em Portugal o problema de todos os "pequenos boavistas" (o Boavista vai a caminho da terceira divisão, já agora...) e de todos os "aprendizes de jaime pacheco" não é jogarem defensivamente - é jogarem desonestamente. Baterem a mais, caírem a mais, despacharem a bola sem critério, desrespeitarem o jogo e os adeptos. Felizmente, sendo o Homem um animal estúpido por natureza, não é impermeável. Pode ser lento a aprender, mas acaba por compreender, e hoje já se começa a compreender que o "jogar mal", se garante alguma coisa, é a falência. De todos: jogadores, clubes e do próprio futebol. Só o "bom jogo" sobrevive e tem hipóteses de triunfar.

Quem continuar a defender o contrário, apresentando resultados, está a contar com a ignorância das pessoas. Quem tiver disponibilidade para procurar mais resultados, muitos resultados, facilmente comprova que as equipas que jogam bem, perdendo algumas vezes, ganham muitas mais. Têm melhores resultados, os adeptos são mais felizes e o futebol é uma experiência melhor. Mesmo não jogando bonito. Jogar bem e bonito é para Ronaldos, Messis, Xavis. Mas talvez o melhor momento do ano, para Ronaldo, tenha sido o golo de livre contra o Arsenal na meia-final da Liga dos Campeões. Uma finta inesquecível? Não. Um pontapé excelente. Pura técnica.

O Benfica não ficou em terceiro por jogar bonito ou feio - ficou em terceiro por jogar mal, sem colectivo. O Porto não chegou aos quartos-de-final da Liga dos Campeões por jogar feio - foi por jogar colectivamente bem. O Sporting não levou doze golos do Bayern por ter batido pouco - foi por não ter jogado suficientemente bem, primeiro nos 45 minutos iniciais em Lisboa, onde não marcou, e depois nos primeiros trinta minutos da segunda parte, onde defendeu mal. Os doze golos já não têm nada a ver com futebol. Acontecem uma vez em cinquenta anos, como comprova o livro de recordes da UEFA.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

É preciso deixar de pensar?

Para se ser um bom benfiquista é preciso deixar de se pensar? É obrigatório, para um benfiquista que se queira considerar como tal, que deixe de utilizar o sentido crítico e que embarque na onda pinhonista - sim, exactamente, de Pinhão, Leonor Pinhão, que não é má sentenciadora mas parece só conseguir chegar até certo ponto no seu ajuizamento antes de ceder à situação, ou, na maior parte dos casos, à "opinião pública" benfiquista?

É claro que não é, e se há coisa que me irrita nisto do Benfica é a facilidade com que se transforma facilidades em verdades.

Por isso, aqui vai:

- a cada dia é mais fácil a Rui Costa rescindir contrato com Quique Flores, sobretudo porque Quique Flores já não quer treinar o Benfica, e só não o diz para conseguir receber o segundo ano de salário sem trabalhar, algo a que sente ter direito por achar que foi o clube que falhou, e não ele, pois deu o melhor que tinha.
Aliás, Quique soube que não teria futuro no Benfica após a derrota na Trofa, a primeira no campeonato, quando disse que ele estava preparado para a pressão, mas que não sabia se o mesmo era verdadeiro da parte das pessoas que o rodeavam. Quique percebeu que uma derrota daquelas, no Benfica, tinha uma dimensão extra-desportiva que não se encaixava na sua maneira de estar no futebol (mais moderada, menos emotiva).
Isto quer dizer que Rui Costa está também, a cada dia que passa, mais próximo do momento em que se vai definir como dirigente. Porque o trabalho fundamental de um director de futebol de uma equipa é gerar processos de trabalho e lealdade. O mais certo é Rui Costa vir a sucumbir à facilidade de trocar de treinador, fazendo a vontade a toda a gente (até a sua, admita-se, neste momento). O mais correcto, contudo, seria Rui Costa sentar-se à mesa e dizer a Quique Flores que não estava dispensado, que não podia ir a lado nenhum e que devia concentrar-se no seu trabalho em Lisboa e não num Santander ou num Bétis qualquer.
- Mas eu dei o meu melhor, e isso aparentemente não é suficiente - dir-lhe-ia Quique. - As pessoas não me entendem e eu não entendo as pessoas.
- Então faz-te entender, e faz melhor. Tens mais um ano de contrato e não és pago para ficar em terceiro, mas para ganhar.
- Talvez seja melhor para todos eu sair.
- Tens duas hipóteses: ou perdes mais um ano da tua carreira ou aproveitas o ano que vais passar num dos dez maiores clubes da Europa para fazer melhor. Mas no Benfica ninguém sai do barco a meio do rio, muito menos um oficial.
O mais provável, novamente, é que o Benfica voltasse a ficar em terceiro, mas se fizesse isto há uma coisa que é certa: no final da próxima época o processo de contratação fosse de quem fosse seria muito mais rigoroso, e os que entrassem saberiam com o que contar. Essa é a verdadeira base de qualquer trabalho rigoroso: responsabilidade.

- ninguém de bom senso ou com honestidade de pensamento poderia esperar, realisticamente, outro final para a época do Benfica. O Porto tem uma equipa consolidada e construída para ganhar campeonatos, que consegue, graças à sua qualidade, situar-se entre as melhores 12/14 da Europa. O Sporting tem melhores jogadores que o Benfica, ainda que mais baratos, e entre eles um núcleo de jovens portugueses de qualidade, perfeitamente adaptados ao clube e à realidade portuguesa, que sabem muito bem o que é o campeonato português, o Porto, o Sporting e o Benfica.
Melhores jogadores? É claro que sim. É evidente que sim. Rui Patrício não é inferior a Quim. Abel é melhor que Maxi Pereira. Polga é melhor que Luisão. Carriço é melhor que Miguel Vítor. Tonel não é inferior a Sidnei. Veloso é melhor que Ruben Amorim. Moutinho é melhor que Katsouranis. Derlei não rende menos que Reyes ou Nuno Gomes. Liedson é muito (muito!) melhor que Cardozo. Izmailov é melhor que Di Maria. Vukcevic seria titular indiscutível na Luz. Qualquer destes jogadores do Sporting, se jogasse no Benfica, subiria imediatamente a sua cotação, mesmo não passando a jogar melhor, apenas por vestir a camisola de um clube de maior dimensão e implantação no povo e na imprensa.
As pessoas que desde o início da temporada andam a colocar o Benfica ao mesmo nível de Porto e Sporting são ou pessoas que percebem mesmo pouco de futebol (mesmo trabalhando em jornais desportivos) ou pessoas mal-intencionadas (sobretudo no Jogo e Record) que passaram o ano a trabalhar para este preciso momento da temporada, em que os adeptos benfiquistas, cabeças-ocas, por acreditarem realmente que é com Reis e Aimares que se ganham campeonatos em Portugal, acreditam que a temporada foi um fracasso. Esses jornalistas, por tendência clubista e/ou interesse económico, sabem que a melhor maneira de perpetuar os fracassos do Benfica é encherem o balão ao longo do Inverno para que, quando chegue a Primavera, ele rebente com estrondo tal que se torne impossível aos (fracos) dirigentes do Benfica não voltar a entrar na rodinha dos ratos que correm, correm, correm mas não saem do lugar. E assim se passam vinte anos com um campeonato ganho (por acidente), graças à imbecilidade recorrente e acrítica do "adepto benfiquista".

- os golos "de Cardozo" - que raramente servem para alguma coisa - vão permitir uma sequela da rábula do ataque pelo menos durante mais um ano. A lógica é simples: se ele é o único que marca golos então não só tem de jogar como toda a equipa deve jogar para ele, e ser feita a partir dele. Ora, os golos "de Cardozo" - dos quais haverá apenas um ou dois que realmente tenham valido vitórias importantes, se tanto, repita-se - só servem para ocultar uma verdade que deveria ser evidente: Cardozo não é jogador para o Benfica, e o Benfica não poderá aspirar a melhor do que isto (o terceiro lugar e um estilo de jogo fraquíssimo) se a sua referência for Cardozo. Para que não restem dúvidas, Cardozo não é melhor que um João Tomás, com um remate melhor mas um jogo de cabeça inferior. O seu nível máximo, enquanto futebolista, deveria ser tornar-se referência de um clube de meio da tabela na Argentina, Uruguai ou México. É um jogador muito lento, na velocidade mas sobretudo na inteligência de jogo. Está sempre atrasado em relação ao movimento da bola e da equipa, emperra o colectivo, não tem capacidade técnica ou física para o futebol europeu (ou, sequer, brasileiro), e ao fim de um ano a jogar em Inglaterra estaria na bancada a ver os jogos. Tem uma técnica de cabeceamento muito fraca, e concretiza pouquíssimos lances dos que lhe aparecem para marcar. Como tem um bom remate e joga muito perto da baliza, vai marcando alguns golos, sobretudo contra equipas mais fracas. A verdade é que se Renteria, por exemplo, jogasse no Benfica, a equipa jogaria melhor e Renteria marcaria mais golos que Cardozo. E Renteria foi dispensado do Porto. O Nené, do Nacional, é mais jogador que o Cardozo - e mesmo ele não é jogador para o Benfica. Hélder Postiga, que é suplente do Sporting, provavelmente ficaria com o seu lugar. De memória recordo dois jogadores que lhe são muito superiores, e que passaram pelo Benfica sem grande glória, por mero preconceito dos adeptos: Van Hoojdonk e Brian Deane. Trocava o Cardozo por qualquer um deles num minuto, e duvido que qualquer treinador da primeira divisão não fizesse o mesmo. Mas como os "benfiquistas" continuam a não perceber que os jornais têm de ser vendidos seja como for, e sobretudo a eles porque são mais que os outros, a grande estrela do Benfica vai continuar a ser um avançado-centro com uma ligeira corcunda e suplente da selecção do Paraguai. Porque até o treinador do Paraguai sabe o que ele vale.

- o Benfica vai voltar a comprar jogadores de qualidade (mais cinco ou seis este ano, aposto) e de futuro, jovens internacionais dos seus países, que venham "colmatar as lacunas" que a equipa teve este ano.
Ora, isto é o contrário do que o Benfica precisa. Primeiro porque a "qualidade" de que se fala (o saber jogar à bola, basicamente) não falta nos jogadores que já lá estão. O Benfica tem jogadores suficientes, em qualidade, para todas as componentes do jogo moderno. Nenhum deles, contudo, à excepção de Miguel Vítor, que se está a formar, e Ruben Amorim, que pouco mais dará do que isto, está a render mais de sessenta por cento do seu valor potencial. E isso não é nem por falta de qualidade nem por falta de trabalho: é por falta de entusiasmo. Ou seja, é por falta de comprometimento colectivo por um objectivo.

A equipa do Benfica não precisa de mais "qualidade": precisa de estofo. Precisa de carácter. Precisa daquilo que transforma boas equipas em equipas vencedoras. Precisa de campeões, de facto. Não dos que ganharam batalhas por estarem no mesmo exército dos lutadores mas dos próprios lutadores, daqueles que fizeram com que as suas equipas triunfassem, dos que têm carácter e não aceitam uma derrota com naturalidade ou complacência. Alguém em quem jogadores de categoria indiscutível como David Luiz, Sidnei, Di Maria ou Reyes, potencialmente dos melhores do mundo, encontrem uma referência de combatividade, alguém que faça o que for preciso para levar a sua equipa à vitória. Estes são os que fazem os outros melhores e sim, eles existem. Os jogadores não são todos iguais e a verdadeira diferença entre um futebolista de sucesso e um bom futebolista está na importância que dá às vitórias. Talvez os benfiquistas mais novos não o entendam bem, mas (para não ir mais longe), o Hernâni que se habituaram a ver no futebol de praia, e que prescindiu da sua carreira para que um colega mais famoso e valioso não perdesse a sua e o clube não perdesse milhares de contos (procurem na Internet) seria, hoje, titular indiscutível do Benfica. O Benfica não precisa de mais jovens, nem de mais qualidade, nem de mais internacionais (que os há aos milhares): precisa de campeões, que são muito mais raros e, por norma, passam muito mais despercebidos, por ser mais difícil aceitá-los.

Isso não é fácil, sobretudo se tomarmos como exemplo o episódio entre Luisão e Katsouranis no Bonfim, o ano passado. A grande preocupação, na altura, foi recriminar os atletas e castigá-los. A política do costume. Houve logo quem quisesse pô-los na rua, sumariamente. A minha tristeza, pelo contrário, foi que o clube tenha aproveitado tão mal, interna e externamente, o momento de maior orgulho demonstrado pela equipa durante toda a temporada. No meio da mediocridade, dois campeões, frustrados e sentindo-se isolados, reagiram a quente e viraram-se um contra o outro. Em vez de aproveitar essa demonstração de orgulho para mobilizar os restantes, em vez de construir em redor desse grito de raiva, o que é que fez o Benfica? Envergonhou-se, castigou os atletas e fez a vontade aos anões moralistas, que se apresentaram muito chocados por verem dois futebolistas fazerem aquilo que os campeões fazem: revoltar-se. A falta de estofo, ao contrário do que as pessoas pensam, não nasce nos futebolistas: ela vem de cima, dos que os contratam e não sabem o que é o futebol ou o Benfica.