quarta-feira, 15 de abril de 2009

Relva queimada

É bastante duvidoso que a situação de salários em atraso em que vive a maioria dos futebolistas profissionais que trabalham em Portugal seja injusta. Se há algo de injusto, de facto, nessa situação, é que sejam apenas os actuais futebolistas a pagarem pela crise quando essa factura deveria ser dividida por todos os jogadores que actuaram em Portugal desde a instituição do profissionalismo.

Ponto prévio: o futebol é dos jogadores. Não é dos espectadores, nem dos treinadores, nem dos árbitros e muito menos dos dirigentes. O futebol é um jogo de onze, ou sete, ou cinco de cada lado, que não precisa de mais nada além de bolas e baliza. Tudo o resto vem depois. Os árbitros, os treinadores, os dirigentes e os adeptos, tendo em comum, grande parte deles, pelo menos nos primeiros tempos, o facto de também serem praticantes ou ex-praticantes. É por ser assim tão simples que um mero jogo na praia se torna interessante: porque o futebol é um jogo de regras elementares (à excepção do fora-de-jogo, que por isso não se utiliza na praia) e técnica difícil, que requer arte e força, que alimenta a incerteza e ilude a sorte.

Por esta ordem de ideias, os futebolistas são os primeiros responsáveis pelo jogo. Ao profissionalizarem-se os futebolistas iniciaram um processo de alheamento em relação à essência do jogo. As pessoas gostavam de os ver jogar, passaram a gostar de os ver ganhar, pagavam para isso, e dessa forma apareceram os técnicos: de treino e estratégia, de arbitragem e de logística.
Com o tempo, porque o seu primeiro e às vezes único interesse nunca deixou de ser o próprio jogo, mais que o dinheiro, e porque nunca quis perder tempo com outros assuntos, o jogador deixou de ser raiz do jogo e passou a ramo de copa, o mais exposto, dependente de todos os outros que ficavam por baixo, sendo os adeptos a grande força vital do futebol de alto nível, dito profissional, porque é quem o sustenta, dando-lhe o seu dinheiro.
O futebolista assumiu uma posição cómoda, e comodista, de fazer aquilo de que gostava recebendo dinheiro por isso. O seu passatempo tornou-se trabalho e esse era um privilégio que compensava o facto de já não serem donos do jogo.

Mas, mesmo não sendo donos do jogo, os futebolistas nunca deixaram, realmente, de ser a sua força essencial - porque, neste momento, hoje, quarta-feira de Liga dos Campeões, se no jogo entre o Porto e o Manchester United faltassem os treinadores, os dirigentes, os árbitros e a porta do estádio estivesse fechada, o jogo poderia decorrer à mesma desde que estivessem onze jogadores de cada lado, determinados a provar aos adversários que constituem a melhor equipa.

Durante décadas o futebolista foi explorado, humilhado e manipulado. Quem diz que os futebolistas ganham muito dinheiro não faz ideia do que diz, pois na América qualquer basquetebolista apenas razoável, ou basebolista, ou jogador de futebol americano ou hóquei no gelo, ganha mais do que o jogador mais bem pago do campeonato português, e de longe. Isso tem tanto a ver com a dimensão do mercado como com o estatuto profissional adquirido pelos desportistas nos Estados Unidos. Os sindicatos são fortes e existem tanto para regular os patrões como os seus associados, e os patrões tiveram de aceitar que sem o talento não há espectáculo, logo não há lucro, logo não há desporto profissional.

O facto de os jogadores terem sido explorados durante décadas não invalida que eles continuem a ser os primeiros responsáveis pelo jogo. O treinador, que é praticamente um futebolista, pois está na linha entre o campo/balneário e o exterior, está logo a seguir, também pela influência directa que tem no comportamento dos jogadores.

E como se comportam os jogadores em Portugal?
Antes de mais nada comportam-se de maneira diferente de quando trabalham no estrangeiro. Só percebemos que temos dos melhores futebolistas do mundo quando as fronteiras se abriram e os nossos principais jogadores passaram a actuar lá fora, com reflexos imediatos nos resultados da Selecção Nacional.

Se se fizesse uma hierarquia dos melhores jogadores de sempre no futebol português por posição, com a excepção de alguns como Cristano Ronaldo, Figo, Rui Costa e outros (muito poucos) do mesmo quilate, provavelmente nenhum dos que estiveram nas equipas que conseguiram os melhores resultados de sempre nos últimos oito anos estaria entre os dez melhores. O que a maior parte tinha em comum, isso sim, ao contrário de jogadores como Sousa, Jaime Pacheco, Álvaro, Jordão, Manuel Fernandes, Nené, Gomes e tantos outros, era o facto de jogarem no estrangeiro e terem uma mentalidade fortalecida. É sempre ingrato apelar ao "se", mas há um "se" que é virtualmente incontestável: se os seus jogadores tivessem a mesma mentalidade profissional dos de hoje, a selecção de 84, que atingiu as meias-finais do Europeu, teria sido não só campeã europeia mas muito provavelmente teria atingido, pelo menos, uma final de um Mundial. Quem é desse tempo sabe disto - como sabe que Paulo Futre não é inferior a Cristiano Ronaldo, apenas teve o azar de viver noutro tempo, noutro clube.

Em Portugal o jogador adora quando ouve o treinador dizer que, quando está apertado, não tem de inventar, tem é de atirar a bola para a frente - porque isso não dá trabalho nenhum.
Adora quando ouve o treinador dizer que não há problema em fazer falta para matar o jogo - porque quanto mais faltas se fizer menos tem de se correr.
Adora quando o treinador define uma estratégia que visa, antes de mais, manter a baliza sem golos, porque destruir jogo é muito mais fácil do que construir uma jogada, sobretudo quando se tem pouco à-vontade com a bola.
Adora poder dizer que o objectivo é a manutenção, porque isso quer dizer evitar perder, e não tentar ganhar. Para não perder é preciso fazer muito menos do que para tentar ganhar.
Sente-se confortável quando é o próprio treinador a mandá-lo ficar no chão nos últimos minutos, para queimar tempo, em vez de suportar a pressão da equipa que tenta recuperar, porque isso é difícil e casativo - sem perceber que, para o adepto, é isso que é interessante.
Fica feliz quando o cartão amarelo se torna um recurso normal da estratégia, assim como quando o próprio treinador ofende o árbitro a torto e a direito, porque poder esconder atrás do árbitro a falta de qualidade da equipa permite-lhe sustentar a indisciplina e a falta de ética com que trabalha.
Em Portugal o jogador normal está viciado em indisciplina. Ela permite-lhe trabalhar o menos possível e receber bom dinheiro ao fim do mês podendo jogar à bola sem se chatear muito.

De repente, um jogo interessante torna-se num suplício, numa coisa que mais valia não existir. Em vez de cinco mil pessoas a ver os seus jogos uma equipa tem quinhentas. Os que deviam ter cinquenta mil têm quinze. O dinheiro, que vem do interesse, desaparece, e quem é que sofre? Os profissionais, obviamente. Aqueles a quem o dinheiro é destinado.

Em Portugal joga-se mal, joga-se feio e joga-se sujo. Quem joga dessa maneira? Os jogadores. Quem deixa jogar assim? Os treinadores. Esse tipo de jogo interessa às pessoas? Não. As pessoas devem sustentar um espectáculo que não tem interesse nenhum? Não. Os profissionais devem ser recompensados por um espectáculo nestes termos? Não. É injusto que os jogadores e treinadores não recebam dinheiro para fazerem o que fazem? Não, não é. É justo. É justíssimo.

É justíssimo que um jogador que simula faltas, faz faltas grosseiras, que facilita, que não se empenha como devia, que faz de um jogo de futebol um exercício de chulice, que queima tempo, que se atira para o chão, que não respeita o espectador pagante - é justíssimo! - que não receba dinheiro por isso.
Quem queima a terra para vender madeira não pode esperar, depois, comer azeitonas.

Se não lhe devia ter sido prometido esse dinheiro? É verdade.
Se os que têm salários em atraso são igualmente ou menos responsáveis que outros que os não têm, ou que ganham fortunas? Também é.

Mas a revolução do futebol português tem de partir da sua raiz: dos que gostam de futebol, dos jogadores. A culpa do estado a que chegou o falido futebol português não é dos dirigentes, nem dos árbitros, é do futebolista que há em cada adepto e em cada profissional.
Do futebolista que há numa criança e que, depois, se torna num jogador, num treinador, num árbitro, num dirigente ou num adepto.

O que está errado nos salários em atraso no futebol português não é os jogadores estarem sem receber, é o facto de alguém os ter deixado acreditar que tinham direito a receber dinheiro para fazerem aquilo que fazem: merda.

Façam assim: experimentem jogar futebol. Vão ver que, mais tarde ou mais cedo, aqui ou noutro lugar, alguém vai pagar para vos ver jogar. Pode não ser muito, mas é garantido.

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