terça-feira, 31 de março de 2009

O benefício da certeza

Miguel Sousa Tavares é um português excepcional. Fica-nos a dúvida do que seríamos, enquanto país, se todos tivéssemos a sua dimensão. Uma potência mundial do discernimento, pelo menos.

Ao lermos o que escreve no Expresso, no Público, na Bola, talvez noutra publicação que eu não saiba, ao vê-lo na TVI, ficamos com a sensação clara que tão facilmente se encontra ao alcance do seu entendimento o plano de expansão nuclear do Irão como o Plano de Pormenor de Cedofeita; tão depressa passa dos contentores aos sobreiros como de Guantanamo a uma coutada de caça em Cuba do Alentejo. Nada se encontra para lá do seu radar crítico e tudo é enquadrável quer no seu raciocínio quer na sua concepção de ética.

Na verdade, o que é mais admirável em Miguel Sousa Tavares é - em contraponto com Nuno Rogeiro, por exemplo, que também tem igual acesso às minudências dos mísseis balísticos intercontinentais e às da Carmen de Bizet, mas que parece não dar muita importância à moral - a vocação para identificar, mesmo em pequenos gestos, a desonestidade das pessoas e para fazer uma leitura moral do seu comportamento.
Essa independência em relação a "eles" faz de MST um dos cabecilhas do contra-poder em Portugal. Se tivéssemos de construir uma bússola política para o nosso país lá estaria MST a fazer de Norte, fixo e orientador, sólido.

Por isto - e também porque, antes da eclosão do Apito Dourado, MST manteve uma leitura bastante séria da actuação de Pinto da Costa como presidente do Porto, não se inibindo de acusar os seus dirigentes de utilizarem as transferências de jogadores para ganhar dinheiro, por exemplo, ao mesmo tempo que louvava o que havia a louvar na sua competência - alimentei a expectativa de ver nele o primeiro portista a defender um castigo exemplar para
o clube e para o seu presidente na sequência das escutas feitas pela Polícia Judiciária. Sousa Tavares, pensei eu, não hesitaria em defender que os princípios são mais importantes que os interesses pessoais, e que nenhum homem deveria ficar impune ante um acto de corrupção, muito menos um homem poderoso como Pinto da Costa.

Confesso que não tenho arcaboiço nem dinheiro para ler ou ouvir tudo o que MST diz em público, mas julgo ter tido a sorte de encontrar o texto definitivo da posição de MST neste caso.
Nesse texto, publicado na Bola, MST dizia que tinha pena. Tinha pena que Pinto da Costa, um homem de grande dimensão, se deixasse rodear por gente tão vulgar como o proxeneta António Araújo (a quem solicitou prostitutas para a equipa de arbitragem de Jacinto Paixão), a alternadeira Carolina Salgado e respectiva quadrilha familiar ou que se tenha prestado a receber, dois dias antes de um encontro em que Azevedo Duarte apitaria um jogo da sua equipa, este árbitro em sua casa.

Esta é uma técnica de advogado manhoso (de um desses advogados manhosos que MST come ao pequeno-almoço depois de passarem a autarcas, deputados ou ministros e de começarem a deturpar a verdade em favor dos seus interesses): usar a semântica para passar uma ideia sem que alguém consiga demonstrar, por um mais dois, que ela tenha sequer sido referida. Se Lourenço Pinto, o advogado que é amigo íntimo de Pinto da Costa e que, sem nunca ter sequer levado com uma bola na cara, foi responsável pela escolha e classificação dos árbitros durante vários anos, utilizasse esta técnica em defesa de qualquer um dos seus clientes que não Pinto da Costa, MST diria dele, no mínimo, que era um escroque.

Porque o que MST realmente quis dizer ao lamentar que Pinto da Costa se deixasse rodear de criminosos foi que tem pena de que Pinto da Costa seja corrupto - para ser mais exacto, tem pena de que Pinto da Costa, um líder natural como há poucos na história portuguesa, se tenha deixado corromper pelo sistema do futebol.

E eu concordo plenamente com ele.

Eu também tenho pena que Pinto da Costa seja corrupto, porque não tenho dúvida de que não apareceu, nos últimos trinta anos, outra pessoa com o seu carisma e capacidade de liderança no futebol português.
Tenho quase a certeza de que Pinto da Costa só é corrupto, hoje, porque percebeu que no futebol português a única forma de vencer era controlando um sistema já de si corrompido e viciado.
Tenho bastante certeza de que, em todos estes anos em que manipulou o sistema, Pinto da Costa não o fez sozinho, apenas o fez melhor e durante mais tempo (precisamente porque o fez melhor). Ninguém me convence da inocência de José Veiga, Gaspar Ramos, João Rocha ou Sousa Cintra, só para dar alguns exemplos de potências paritárias, nem à força da bala.
Tenho pena, sobretudo, porque, com a vocação natural que temos pelo futebol e com a nossa paixão clubística, se Pinto da Costa tivesse aparecido num ambiente de competição sã provavelmente hoje estaríamos entre as quatro principais potências futebolísticas da Europa. Benfica, Porto, Sporting e outros seriam clubes muito melhores do que o que são.

Dito isto, tenho pena de que MST não tenha dito apenas isso, desta forma: que tem pena de que Pinto da Costa seja corrupto. Porque isso faria toda a diferença. E isso, com todas as letras, MST nunca tem a coragem de dizer.
Provavelmente porque, seguindo esse caminho de honestidade intelectual, imediatamente a seguir teria de reconhecer que não saberia dizer, ninguém poderia saber, até que ponto todas as conquistas do Porto nestes trinta anos estariam maculadas de corrupção - uma vez que, como também é evidente, só se pode ser campeão europeu quando se consegue a qualificação para a Taça dos Campeões, assim como é diferente, para a construção competitiva de um jogador, ganhar dez vezes ou apenas duas. Certo?

Para evitar dizer o óbvio, MST joga para o empate, utilizando, sobretudo, o argumento do Apito Encarnado - a teoria da conspiração segundo a qual todo este processo resulta de uma manipulação do Benfica com vista a retirar méritos ao Porto e ao mesmo tempo a ganhar proveitos indevidos em seu lugar. Uma teoria que, novamente, para mim também faz sentido.

A leitura que se faz é a seguinte: MST concorda que o Porto corrompe, mas como toda a gente sabe que não é o único e que durante muito tempo foi o principal prejudicado pela corrupção não pode ser condenado por isso. É o tipo de argumentação que os portistas têm utilizado, e não só: é a argumentação implícita que a defesa de Pinto da Costa faz ao rejeitar não o conteúdo das escutas mas a sua existência. É uma leitura moral da situação.
Mas é ridícula, obviamente. Seria a mesma coisa que dizer: "Nós temos um filme a mostrar este tipo a dar um tiro a outro, mas como alguém não assinou um papel para ligarmos a câmara não podemos dizer que ele tenha alvejado alguém. Além disso, hoje apareceu outro tipo morto, e alguém o matou. Ora, se não apanharmos um assassino também não podemos prender o outro, porque não seria justo para este."

Com esta lógica não havia ninguém preso no mundo e os criminosos estavam todos cá fora, porque faltava apanhar os outros.

É um bocado como dizer que Pinto da Costa não pode ser condenado por causa do testemunho de Carolina Salgado, por ela não ser uma pessoa séria. Por essa via de pensamento não haveria um único mafioso preso, pois praticamente todos eles, se o estão, é porque houve outros (todos eles assassinos, ladrões, enfim) que os denunciaram e testemunharam contra eles, e quantas vezes salvando a própria vida com isso (haverá maior interesse pessoal?), pois passaram a ser protegidos pelo Estado, que impedia que fossem mortos por vingança.

A condenação ou absolvição de Pinto da Costa pelos tribunais, civis ou desportivos, é irrelevante. Aliás, acho muito bem que os casos de corrupção desportiva tenham penas suspensas e reduzidas - quer se queira quer não isto é apenas um jogo, se condiciona as vidas dos nossos filhos não devia e não deve faltar espaço nas cadeias para os criminosos a sério, que matam ou violam.

O que não se pode, a bem da nossa dignidade colectiva, é fazer de conta que somos todos atrasados mentais e que devemos aceitar de boca fechada quando somos enganados.

Para mim estes quinze ou dezasseis campeonatos do Porto valem tanto como os quatro ou cinco do Benfica e os dois ou três do Sporting: não sei quanto é que valem, porque não sei até que ponto é que eles não foram distribuídos em envelopes.

O que é fundamental, para que não percamos as nossas referências e não passemos a viver num país entregue à infâmia, à verdadeira infâmia, é perguntar a Miguel Sousa Tavares, um dos nossos líderes de opinião, qual seria a sua se:

- o presidente do Benfica fosse escutado, pela PJ, a angariar prostitutas junto de um proxeneta/empresário de futebolistas que já tivesse feito vários negócios com o clube, tendo em vista uma equipa de arbitragem que ia apitar o jogo do Benfica no dia seguinte;

- o presidente do Benfica recebesse em sua casa um árbitro de futebol, precisamente o que iria apitar o jogo do seu clube no domingo seguinte, e, segundo o testemunho da sua companheira, lhe tivesse entregado um envelope com dinheiro;

- o advogado e compadre do presidente do Benfica (que já tinha sido presidente da comissão de arbitragem da FPF durante vários anos sem haver qualquer justificação para isso ao nível desportivo, e nomeado precisamente pela Associação de Futebol do Porto) o avisasse de buscas que seriam realizadas pela polícia na sua residência, levando a que o presidente do Benfica fugisse, por exemplo, para Badajoz;

- o Benfica tivesse pago viagens ao Brasil a um árbitro de primeiro escalão de quem se falava, precisamente na altura em que a história saiu a público, para presidir à Comissão de Arbitragem da FPF.

Bastavam estas quatro perguntas e, acima de tudo, quatro respostas honestas. Aliás, em boa verdade, bastava a primeira.

Certamente Miguel Sousa Tavares diria que qualquer coisa a menos que a erradicação desse presidente, nem que fosse por intervenção governamental, seria uma vergonha para o país. E teria razão.
Pelo contrário, a partir do Apito Dourado, MST perdeu o direito ao julgamento moral de qualquer político corrupto de meia-tigela, não por não possuir consciência moral mas porque jamais saberemos quando é que ele a está a utilizar ou a manipulá-la tendo em conta os seus próprios interesses, por mais mesquinhos que sejam, mesmo que se limitem a um mero passatempo de fim-de-semana.

Que Pinto da Costa é corrupto é um dado adquirido e ninguém (NINGUÉM!) duvida disso. Que não é o único também. A verdadeira questão não é essa.

A verdadeira e única questão é o que estão as pessoas dispostas a fazer para acabar com a corrupção no futebol quando ela se torna evidente e comprovada - a começar pelo que o próprio Pinto da Costa está disposto a fazer.

E aí Pinto da Costa perde toda a sua dimensão de líder e torna-se num mero oportunista, num parasita deste país onde deveria ser grande, porque em vez de se sacrificar e de pôr a nu tudo aquilo que sabe (e isso seria suficiente para todos ficarmos a saber que não provavelmente nunca houve um título limpo, em Portugal, nos últimos quarenta anos ou mais), esconde-se no fundo da sua toca.

O que Pinto da Costa não percebe (provavelmente porque o orgulho não lho permite) é que esta é uma oportunidade que ele não deveria perder, porque a verdade vai saber-se, os tempos são outros e nada fica enterrado. A corrupção vai ser (ainda mais) revelada, a dele e a dos outros (provavelmente só quando ele já cá não estiver, porque antes disso ninguém o desafiará), ele já não se poderá defender, e não será um qualquer advogado manhoso a conseguir ilibá-lo.

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