terça-feira, 31 de março de 2009

O benefício da certeza

Miguel Sousa Tavares é um português excepcional. Fica-nos a dúvida do que seríamos, enquanto país, se todos tivéssemos a sua dimensão. Uma potência mundial do discernimento, pelo menos.

Ao lermos o que escreve no Expresso, no Público, na Bola, talvez noutra publicação que eu não saiba, ao vê-lo na TVI, ficamos com a sensação clara que tão facilmente se encontra ao alcance do seu entendimento o plano de expansão nuclear do Irão como o Plano de Pormenor de Cedofeita; tão depressa passa dos contentores aos sobreiros como de Guantanamo a uma coutada de caça em Cuba do Alentejo. Nada se encontra para lá do seu radar crítico e tudo é enquadrável quer no seu raciocínio quer na sua concepção de ética.

Na verdade, o que é mais admirável em Miguel Sousa Tavares é - em contraponto com Nuno Rogeiro, por exemplo, que também tem igual acesso às minudências dos mísseis balísticos intercontinentais e às da Carmen de Bizet, mas que parece não dar muita importância à moral - a vocação para identificar, mesmo em pequenos gestos, a desonestidade das pessoas e para fazer uma leitura moral do seu comportamento.
Essa independência em relação a "eles" faz de MST um dos cabecilhas do contra-poder em Portugal. Se tivéssemos de construir uma bússola política para o nosso país lá estaria MST a fazer de Norte, fixo e orientador, sólido.

Por isto - e também porque, antes da eclosão do Apito Dourado, MST manteve uma leitura bastante séria da actuação de Pinto da Costa como presidente do Porto, não se inibindo de acusar os seus dirigentes de utilizarem as transferências de jogadores para ganhar dinheiro, por exemplo, ao mesmo tempo que louvava o que havia a louvar na sua competência - alimentei a expectativa de ver nele o primeiro portista a defender um castigo exemplar para
o clube e para o seu presidente na sequência das escutas feitas pela Polícia Judiciária. Sousa Tavares, pensei eu, não hesitaria em defender que os princípios são mais importantes que os interesses pessoais, e que nenhum homem deveria ficar impune ante um acto de corrupção, muito menos um homem poderoso como Pinto da Costa.

Confesso que não tenho arcaboiço nem dinheiro para ler ou ouvir tudo o que MST diz em público, mas julgo ter tido a sorte de encontrar o texto definitivo da posição de MST neste caso.
Nesse texto, publicado na Bola, MST dizia que tinha pena. Tinha pena que Pinto da Costa, um homem de grande dimensão, se deixasse rodear por gente tão vulgar como o proxeneta António Araújo (a quem solicitou prostitutas para a equipa de arbitragem de Jacinto Paixão), a alternadeira Carolina Salgado e respectiva quadrilha familiar ou que se tenha prestado a receber, dois dias antes de um encontro em que Azevedo Duarte apitaria um jogo da sua equipa, este árbitro em sua casa.

Esta é uma técnica de advogado manhoso (de um desses advogados manhosos que MST come ao pequeno-almoço depois de passarem a autarcas, deputados ou ministros e de começarem a deturpar a verdade em favor dos seus interesses): usar a semântica para passar uma ideia sem que alguém consiga demonstrar, por um mais dois, que ela tenha sequer sido referida. Se Lourenço Pinto, o advogado que é amigo íntimo de Pinto da Costa e que, sem nunca ter sequer levado com uma bola na cara, foi responsável pela escolha e classificação dos árbitros durante vários anos, utilizasse esta técnica em defesa de qualquer um dos seus clientes que não Pinto da Costa, MST diria dele, no mínimo, que era um escroque.

Porque o que MST realmente quis dizer ao lamentar que Pinto da Costa se deixasse rodear de criminosos foi que tem pena de que Pinto da Costa seja corrupto - para ser mais exacto, tem pena de que Pinto da Costa, um líder natural como há poucos na história portuguesa, se tenha deixado corromper pelo sistema do futebol.

E eu concordo plenamente com ele.

Eu também tenho pena que Pinto da Costa seja corrupto, porque não tenho dúvida de que não apareceu, nos últimos trinta anos, outra pessoa com o seu carisma e capacidade de liderança no futebol português.
Tenho quase a certeza de que Pinto da Costa só é corrupto, hoje, porque percebeu que no futebol português a única forma de vencer era controlando um sistema já de si corrompido e viciado.
Tenho bastante certeza de que, em todos estes anos em que manipulou o sistema, Pinto da Costa não o fez sozinho, apenas o fez melhor e durante mais tempo (precisamente porque o fez melhor). Ninguém me convence da inocência de José Veiga, Gaspar Ramos, João Rocha ou Sousa Cintra, só para dar alguns exemplos de potências paritárias, nem à força da bala.
Tenho pena, sobretudo, porque, com a vocação natural que temos pelo futebol e com a nossa paixão clubística, se Pinto da Costa tivesse aparecido num ambiente de competição sã provavelmente hoje estaríamos entre as quatro principais potências futebolísticas da Europa. Benfica, Porto, Sporting e outros seriam clubes muito melhores do que o que são.

Dito isto, tenho pena de que MST não tenha dito apenas isso, desta forma: que tem pena de que Pinto da Costa seja corrupto. Porque isso faria toda a diferença. E isso, com todas as letras, MST nunca tem a coragem de dizer.
Provavelmente porque, seguindo esse caminho de honestidade intelectual, imediatamente a seguir teria de reconhecer que não saberia dizer, ninguém poderia saber, até que ponto todas as conquistas do Porto nestes trinta anos estariam maculadas de corrupção - uma vez que, como também é evidente, só se pode ser campeão europeu quando se consegue a qualificação para a Taça dos Campeões, assim como é diferente, para a construção competitiva de um jogador, ganhar dez vezes ou apenas duas. Certo?

Para evitar dizer o óbvio, MST joga para o empate, utilizando, sobretudo, o argumento do Apito Encarnado - a teoria da conspiração segundo a qual todo este processo resulta de uma manipulação do Benfica com vista a retirar méritos ao Porto e ao mesmo tempo a ganhar proveitos indevidos em seu lugar. Uma teoria que, novamente, para mim também faz sentido.

A leitura que se faz é a seguinte: MST concorda que o Porto corrompe, mas como toda a gente sabe que não é o único e que durante muito tempo foi o principal prejudicado pela corrupção não pode ser condenado por isso. É o tipo de argumentação que os portistas têm utilizado, e não só: é a argumentação implícita que a defesa de Pinto da Costa faz ao rejeitar não o conteúdo das escutas mas a sua existência. É uma leitura moral da situação.
Mas é ridícula, obviamente. Seria a mesma coisa que dizer: "Nós temos um filme a mostrar este tipo a dar um tiro a outro, mas como alguém não assinou um papel para ligarmos a câmara não podemos dizer que ele tenha alvejado alguém. Além disso, hoje apareceu outro tipo morto, e alguém o matou. Ora, se não apanharmos um assassino também não podemos prender o outro, porque não seria justo para este."

Com esta lógica não havia ninguém preso no mundo e os criminosos estavam todos cá fora, porque faltava apanhar os outros.

É um bocado como dizer que Pinto da Costa não pode ser condenado por causa do testemunho de Carolina Salgado, por ela não ser uma pessoa séria. Por essa via de pensamento não haveria um único mafioso preso, pois praticamente todos eles, se o estão, é porque houve outros (todos eles assassinos, ladrões, enfim) que os denunciaram e testemunharam contra eles, e quantas vezes salvando a própria vida com isso (haverá maior interesse pessoal?), pois passaram a ser protegidos pelo Estado, que impedia que fossem mortos por vingança.

A condenação ou absolvição de Pinto da Costa pelos tribunais, civis ou desportivos, é irrelevante. Aliás, acho muito bem que os casos de corrupção desportiva tenham penas suspensas e reduzidas - quer se queira quer não isto é apenas um jogo, se condiciona as vidas dos nossos filhos não devia e não deve faltar espaço nas cadeias para os criminosos a sério, que matam ou violam.

O que não se pode, a bem da nossa dignidade colectiva, é fazer de conta que somos todos atrasados mentais e que devemos aceitar de boca fechada quando somos enganados.

Para mim estes quinze ou dezasseis campeonatos do Porto valem tanto como os quatro ou cinco do Benfica e os dois ou três do Sporting: não sei quanto é que valem, porque não sei até que ponto é que eles não foram distribuídos em envelopes.

O que é fundamental, para que não percamos as nossas referências e não passemos a viver num país entregue à infâmia, à verdadeira infâmia, é perguntar a Miguel Sousa Tavares, um dos nossos líderes de opinião, qual seria a sua se:

- o presidente do Benfica fosse escutado, pela PJ, a angariar prostitutas junto de um proxeneta/empresário de futebolistas que já tivesse feito vários negócios com o clube, tendo em vista uma equipa de arbitragem que ia apitar o jogo do Benfica no dia seguinte;

- o presidente do Benfica recebesse em sua casa um árbitro de futebol, precisamente o que iria apitar o jogo do seu clube no domingo seguinte, e, segundo o testemunho da sua companheira, lhe tivesse entregado um envelope com dinheiro;

- o advogado e compadre do presidente do Benfica (que já tinha sido presidente da comissão de arbitragem da FPF durante vários anos sem haver qualquer justificação para isso ao nível desportivo, e nomeado precisamente pela Associação de Futebol do Porto) o avisasse de buscas que seriam realizadas pela polícia na sua residência, levando a que o presidente do Benfica fugisse, por exemplo, para Badajoz;

- o Benfica tivesse pago viagens ao Brasil a um árbitro de primeiro escalão de quem se falava, precisamente na altura em que a história saiu a público, para presidir à Comissão de Arbitragem da FPF.

Bastavam estas quatro perguntas e, acima de tudo, quatro respostas honestas. Aliás, em boa verdade, bastava a primeira.

Certamente Miguel Sousa Tavares diria que qualquer coisa a menos que a erradicação desse presidente, nem que fosse por intervenção governamental, seria uma vergonha para o país. E teria razão.
Pelo contrário, a partir do Apito Dourado, MST perdeu o direito ao julgamento moral de qualquer político corrupto de meia-tigela, não por não possuir consciência moral mas porque jamais saberemos quando é que ele a está a utilizar ou a manipulá-la tendo em conta os seus próprios interesses, por mais mesquinhos que sejam, mesmo que se limitem a um mero passatempo de fim-de-semana.

Que Pinto da Costa é corrupto é um dado adquirido e ninguém (NINGUÉM!) duvida disso. Que não é o único também. A verdadeira questão não é essa.

A verdadeira e única questão é o que estão as pessoas dispostas a fazer para acabar com a corrupção no futebol quando ela se torna evidente e comprovada - a começar pelo que o próprio Pinto da Costa está disposto a fazer.

E aí Pinto da Costa perde toda a sua dimensão de líder e torna-se num mero oportunista, num parasita deste país onde deveria ser grande, porque em vez de se sacrificar e de pôr a nu tudo aquilo que sabe (e isso seria suficiente para todos ficarmos a saber que não provavelmente nunca houve um título limpo, em Portugal, nos últimos quarenta anos ou mais), esconde-se no fundo da sua toca.

O que Pinto da Costa não percebe (provavelmente porque o orgulho não lho permite) é que esta é uma oportunidade que ele não deveria perder, porque a verdade vai saber-se, os tempos são outros e nada fica enterrado. A corrupção vai ser (ainda mais) revelada, a dele e a dos outros (provavelmente só quando ele já cá não estiver, porque antes disso ninguém o desafiará), ele já não se poderá defender, e não será um qualquer advogado manhoso a conseguir ilibá-lo.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A vídeo-prova da trissomia

Qualquer adepto do futebol em Portugal que sintonize a SIC Notícias e oiça o Rui Santos defender a vídeo-arbitragem poderá perfeitamente convencer-se de que não só foi ele quem teve a ideia como ninguém no mundo o compreende.
Se bem que seja verdade que o Rui Santos se tem em grande conta, neste caso ele é inocente: ele não tem culpa que noventa e nove por cento dos adeptos portugueses desconheça o desporto americano e não saiba que, lá, neste momento, a questão já tenha deixado de ser se se deve usar ou não os apoios tecnológicos à arbitragem para passar a ser como limitá-los e impedir que destruam o espectáculo desportivo.
Mas fica bem ao Rui Santos ser inocente, neste caso, porque a vídeo-arbitragem, afinal, é a panaceia dos inocentes.

Que não se confunda as coisas: não só acredito que se deve usar câmaras para ajudar os árbitros como acho que isso já está atrasado pelo menos quinze anos. O nível de profissionalismo do jogo já suplantava em muito, em 1995, aquilo que o rodeava, desde a estrutura competitiva à financeira, e sobretudo às regras e à arbitragem. Hoje, esta última componente é ainda a mais atrasada - embora todas elas estejam na Idade Média do profissionalismo se considerarmos as ligas dos Estados Unidos. O grande paradoxo do futebol é ser, ao mesmo tempo, a mais importante e a mais retrógrada modalidade do mundo. Noutras ocasiões voltarei a isto, mas hoje fico-me pela vídeo-arbitragem.

Nos países do Norte da Europa e Inglaterra a vídeo-arbitragem será, provavelmente - se for introduzida de maneira a não matar a fluência natural do jogo (e isso não é tão fácil como o Rui Santos diz, porque uma coisa é esperar sete ou oito vezes um minuto ou dois para que um jogador saia de campo, outra muito diferente é interromper o jogo durante cinco ou seis minutos dez ou onze vezes por jogo, e se não concordam experimentem gravar um jogo e pará-lo por quatro ou cinco minutos sempre que há uma decisão importante a rever) -, a vídeo-arbitragem será, dizia, excelente, porque fará aquilo que é suposto fazer: permitirá ao árbitro errar menos e tornar o jogo mais justo.
No Sul da Europa, onde o jogo não é tão importante como os clubes (e Portugal é um dos casos mais radicais nesse aspecto), as pessoas vão esperar que a vídeo-arbitragem sirva para fazer uma coisa que ela não conseguirá fazer: evitar que alguns clubes percam.
Não, na Europa do Sul a vídeo-arbitragem, ainda que melhorando o nível das arbitragens (porque impedirá alguns erros grosseiros) não só não eliminará a contestação como, a médio prazo, a irá alimentar. Porquê? Há uma frase que se costuma dizer e que é incorrecta, e induz a que se pense mal: diz-se que o erro faz parte do jogo, mas o que faz parte do jogo é a subjectividade, o que é diferente, porque só se aceita o erro se se compreender a subjectividade da decisão. Ora, com ou sem vídeo, a subjectividade mantém-se.

Coloquemo-nos ante situações reais.

- O penálti das Antas, que deu o empate ao Porto frente ao Benfica. Imaginemos que o Benfica pede para parar o jogo e reavaliar o lance. Pedro Proença recorre ao vídeo e percebe que o toque que ele julgou ver no pé de Lisandro, e que o levou a lançar a perna como se tivesse sido rasteirado, afinal não existe. No entanto, repara que há uma mão de Yebda no peito de Lisandro. Considera, contudo, que não foi por isso que Lisandro caiu (tanto que se projectou para a frente, e não se deteve, como aconteceria se tivesse sido puxado ou obstruído). Não marca o penálti. No dia seguinte os portistas iriam querer crucificá-lo por não marcar a falta com o braço. Caso a marcasse, os benfiquistas iriam querer crucificá-lo por ter assinalado uma falta, no entender deles, inexistente. O que era ainda menos desculpável se se considerasse que até tinha tido o vídeo para desfazer dúvidas. "O pior cego é o que não quer ver", dir-se-ia, com o acordo de pelo menos metade dos jornalistas, se calhar até incluindo o Rui Santos. Ou seja, mesmo com vídeo-arbitragem Pedro Proença seria considerado corrompido - porque, já se sabe, em Portugal todo o erro tem uma mão negra atrás.
Repare-se que Pedro Proença seria considerado culpado não por ter errado, porque essa é uma certeza que ninguém poderia ter dadas as dúvidas levantadas pelo lance, mas por ter tomado uma decisão. Como foi, afinal.

- O lance do Miguel Vítor com o Nacional. A mesma situação. Pedro Henriques vê o vídeo. Se decide que a mão é intencional (e esse é o critério para marcar a falta, não o facto da bola ter tocado na mão, como ele atrapalhadamente referiu no dia seguinte) invalida o golo e os benfiquistas caem-lhe em cima. Se decide o contrário o Benfica ganha o jogo e a outra metade do país conclui que ele só mudou de opinião porque era o Benfica. "Em Alvalade não mudava de opinião, garanto-te", dir-se-ia nos cafés, com plena certeza.

- Vamos mais longe? O lance do golo que deu o campeonato ao Benfica frente ao Sporting - e aqui estou mesmo a eliminar completamente o factor-subjectividade uma vez que se trata, na minha opinião, do mais sensacional parafenómeno sociológico português em cem anos, em muito superior até às visões de Fátima, e em que seis milhões de pessoas parecem incorrer numa espécie de autismo mútuo e tacitamente combinado, de negação das evidências, apenas para não perderem o direito moral a uma vitória no campeonato. A sério: os benfiquistas simplesmente RECUSAM admitir que tenha havido falta do Luisão sobre o Ricardo, e mantêm-se unidos nesse código secreto como se as suas vidas de adulto dependessem disso.
Ora, a falta é, pura e simplesmente, evidente. Se o Sporting teria sido ou não campeão não sei, porque faltavam mais 100 minutos de campeonato, mas duvido que não o fosse.
Paraty revia o lance. Insistia no erro. Prova de culpa para os sportinguistas. Corrigia-o. Imperdoável para os benfiquistas. Mesmo que não estivesse errado, passava a estar, assim como hoje está, para os benfiquistas, certo, apesar de estar errado. O vídeo? Ora, o vídeo era a prova do crime, pois então!

- Mais: os fora-de-jogo. Qual é a parte do corpo que conta? O pé? Qual, o da frente ou o de trás, que impulsiona o corpo (não é de uma vantagem que se trata?) O peito, como no atletismo? A cabeça, que também pode marcar golos? E se duas cabeças estiverem lado a lado, com diferenças tão pequenas que uma câmara nem sequer consegue medir? Quando o jogo continua a coisa acaba por passar, mas agora não: com o jogo parado, a imagem parada, o país parado à espera de uma decisão, o árbitro tem de decidir - mesmo que não lhe passe pela cabeça como. Alguém que critica os fiscais-de-linha deveria assistir ao vivo a um jogo da linha lateral, assinalar as jogadas que lhe parecem fora-de-jogo e gravar o jogo, para depois, em casa, ver quantos erros cometeu.
Nesse processo perceberia uma coisa evidente: se quem assinala o fora-de-jogo é um árbitro, o momento que conta não é quando a bola parte mas quando o árbitro vê o avançado que a vai receber. Ora aqui está uma evidência física que não precisa de vídeo-vigilância. No entanto, nunca ouvi ninguém dizê-la.

- E as agressões nos cantos? Será possível evitar, agora, esses penáltis? Se um treinador pedisse para rever o lance o que é que o árbitro diria? "Não é falta"? Mas é claro que é falta, e é claro que é penálti! E tem de marcar!

- Passemos ao vídeo-árbitro, isto é, ao quinto elemento, que está, supostamente, fechado sozinho numa sala a ver o jogo pela televisão, como no râguebi. Esse quinto elemento (cujo nome seria objecto de notícia na TSF, na Renascença, nos jornais, enfim, como todos os outros), porque é que ele é diferente dos outros? Vamos imaginar que nesse jogo das Antas o vídeo-árbitro é o Lucílio (não vai haver cursos especiais para vídeo-árbitros, pois não? Os vídeo-árbitros são os árbitros do quadro da Liga). Seja qual for a decisão que o Lucílio tomar, ele é culpado.

Só para acabar, o melhor sistema de vídeo-arbitragem é o da NFL, a liga profissional de futebol americano. As equipas têm um membro da equipa técnica e um especialista de regras a ver o jogo noutra sala fechada (como passará a acontecer cá) e sempre que há uma decisão contra eles que pode ser sujeita a correcção avisam, em tempo real, o treinador de campo, que toma a decisão de pedir a paragem do jogo para visionamento pelo árbitro principal num ecrã situado junto ao campo.
Porque é que tem de ser o treinador a decidir? Porque o futebol americano é um jogo de contacto permanente e de muitas faltas não assinaladas, exactamente como o futebol europeu, e para evitar que cada jogo parasse de três em três minutos os treinadores são responsabilizados pelos seus próprios maus julgamentos. Como? Se a decisão for corrigida nada acontece, mas se ela se mantiver a equipa que a pediu deixa de poder utilizar um dos descontos de tempo a que tem direito, o que, naquele jogo, pode ser a diferença entre ganhar e perder.

Podemos utilizar esses sistema cá, e dizer, por exemplo, ao Paulo Bento, que passa a vida na linha lateral a dar bitaites porque lhe saem baratos, que pode pedir as paragens que quiser mas por cada uma que se revelar inútil terá de jogar com menos um jogador durante quinze minutos. Agora a sério, mesmo a sério, acham que o Paulo Bento preferia arriscar ou ia continuar a preferir mandar bitaites em noventa por cento das vezes que se diz roubado? É que eu quase que apostava mais na segunda hipótese. Até o estou a ouvir, no fim do jogo: "Porque é que não pedi para rever tal jogada? Não é óbvio? Da maneira como as coisas são contra nós era praticamente estar a tirar um jogador à equipa, porque o árbitro jamais mudaria de opinião mesmo que não tivesse razão, só para nos prejudicar" Depois disso apareceriam os fóruns na Internet a darem-lhe razão, o Rui Santos a admitir que se calhar ele tinha motivos para duvidar porque o Sporting já tinha sido prejudicado ene vezes, os outros a dizer que não, etc.
Ficção? Pois, pois...

Podemos limitar o número de situações em que a vídeo-arbitragem é aplicada, estabelecer parâmetros racionais, optimizar o sistema, meter mais e melhores câmaras, fazer trinta por uma linha, mas daqui a uns anos vamos estar a chegar à conclusão de que a vídeo-arbitragem veio a ser um factor de agravamento da suspeição e mais um balde de gasolina para a fogueira. E inevitável, o que é pior, pois de facto não a utilizar é ainda mais absurdo.
É claro que tudo isto é ridículo, porque é o desrespeito absoluto do jogo, mas é o que é.
Novamente irá aparecer alguém a dizer que a única e infelizmente monótona opção bule com o nosso fundo cultural e diz-nos que a única forma de não matarmos o jogo é estarmos preparados para aceitarmos perder um campeonato por causa de uma decisão de arbitragem.
E o que isso dói cá dentro?

E isto é verdade mesmo que, como estou convencido de que acontecerá, venham árbitros estrangeiros e libertos da trissomia do nosso futebol apitar os jogos de Benfica, Porto e Sporting, e mesmo que os seus nomes só sejam conhecidos à chegada ao estádio.

Sabem, às vezes os velhotes do International Board têm alguma razão em não forçar o jogo a rebaixar-se à pior natureza das pessoas. Eles devem saber que aspirinas não curam cancros.

quarta-feira, 25 de março de 2009

A implosão do Porto e a barcelonização do Benfica

Actualmente o Porto parece invulnerável. Vai a caminho do quarto campeonato seguido, mantém o treinador, está entre as melhores oito equipas da Europa. Pode mesmo supor-se que irá mais longe, que não vai falhar o segundo penta e que pode chegar, mais cedo ou mais tarde, a uma meia-final ou uma final da Liga dos Campeões. A equipa é forte e estável.
No entanto, há uma fragilidade óbvia em tudo isto, que a competência de Pinto da Costa esconde mas que qualquer pessoa minimamente atenta consegue detectar: o Porto não consegue gerar receitas suficientes para sustentar, a longo prazo, o seu crescimento.

Atentemos nisto:
- o Porto vive, ainda, dos rendimentos de um micro-ciclo em que, como se comprova pelos resultados nos anos que se seguiram, foi muito mais o fenómeno de José Mourinho a levar o clube ao sucesso do que o contrário. Se é verdade que Mourinho não teria sido campeão europeu no Benfica ou no Sporting, não o será menos que o Porto não teria sido sequer campeão nacional sem Mourinho. Quando Mourinho entra o Porto está à deriva. A aposta em Octávio falhara e o balneário estava em estado de coma (leiam o livro). Até o Jorge Costa tinha sido mandado para o exílio. O que teria acontecido se Mourinho não tivesse chegado ao Porto é uma incógnita tal que permite qualquer especulação, e Mourinhos aparecem de trinta em trinta anos (e nem sempre no Porto).
Com o dinheiro ganho pelos resultados na Europa e, sobretudo, pela venda super-inflacionada de jogadores (os negócios com o Dínamo de Moscovo, por exemplo, pertencem à categoria dos tabus mais reclusos na história do futebol português), o Porto não só refez e desperdiçou uma equipa (em jogadores subaproveitados como Diego, Luis Fabiano e muitos outros de que nem sequer já nos lembramos) como voltou a construir outra, com Adriaanse, e é apenas graças a essas centenas de milhões de euros em caixa que pôde comprar e manter jogadores da categoria de Lucho González, Quaresma, Rodriguez ou Hulk. Isso não invalida que o Porto saiba escolher bem e, sobretudo, que ponha os jogadores a render, nem que tenha uma formação capaz de gerar talentos como Bruno Alves. Mas sem o dinheiro de Mourinho a equipa do Porto não teria a vantagem técnica que hoje possui, por exemplo, em relação ao Sporting (que escolhe e forma melhor), e que lhe permite dar de avanço.

- o Porto está no nível máximo da sua rentabilidade económica se se retirar da equação a venda de jogadores. Vendendo jogadores, e não havendo outro Mourinho que faça omeletes de caviar com Derleis, Postigas, McCarthys, Nunos Valentes, Costinhas, etc, o nível da equipa, mesmo que se mantenha estável, nunca subirá, e muito provavelmente descerá assim que esta atingir o topo do seu ciclo (que pode muito bem ser até já este ano, ou o seguinte).
Participando na Champions todos os anos, enchendo o estádio graças aos resultados, o Porto depende, sobretudo, da renegociação de contratos televisivos (onde dificilmente terá vantagem em relação ao Benfica, por exemplo, como se verá) e de uma eventual criação da Liga Europeia, o desejo secreto do G-24, ou 36, ou seja lá o que for. Mas isso vem longe e é incerto.
E, neste ponto de máxima rentabilização desportiva, quais são os resultados do Porto? 10 milhões de euros de prejuízo. 10 milhões! Para que fique bem claro: se o Porto, no ponto desportivamente mais alto que consegue atingir, não consegue ter LUCRO, então o Porto tem um défice estrutural insanável e incompatível com o nível a que quer competir. Dizendo de outra maneira, o Porto não consegue criar receitas para ter um Lucho González ou um Hulk, e está a apenas uma ou duas épocas de menos sucesso de poder, sequer, pensar em comprá-los.

Este é um momento (entre quatro a cinco anos) de potencial viragem nas forças do futebol português, porque o Porto vai abanar. É uma inevitabilidade histórica. Porquê?

1 - Ninguém é infalível. Quem diz que Pinto da Costa é infalível esquece, por exemplo, as apostas em Tomislav Ivic, em Octávio Machado (que quase destruiu um balneário blindado ao longo de 20 anos, e apenas porque tentou melhorá-lo), no ano dos três treinadores (o Tótó Giggio, Fernandez e Couceiro). Também esquece que, para conseguir encontrar três ou quatro jogadores de grande nível que assentassem na equipa, comprou (e continua a comprar) mais de 30. Stepanov, Farías, Benítez, Mariano González, veremos se Madrid, Bolatti, enfim, são luxos de clube rico - que o Porto não é, como se comprova.
Coloquemos este cenário: Jesualdo sai, por opção ou por se ter terminado o ciclo, o Porto contrata Queirós, por exemplo (alguém duvida?), e este falha, porque o seu feitio não se coaduna com o tipo de lealdade que é necessária ao Porto para funcionar. Compram-se jogadores para tapar buracos, o que é sempre o primeiro passo para o desastre, e o Porto afunda-se. Onde é que existe o "Fundo de Garantia Mourinho" para recomeçar? E os outros, Benfica e Sporting, não estarão então mais fortes? Para onde caminhará, então o Porto, sem Liga dos Campeões e sem jogadores de qualidade extra para fazer os remendos financeiros?

2 - Pinto da Costa não é eterno, apesar de muitos adeptos não saberem que antes dele o Porto já existia há 80 anos, e não está a ficar novo. Por mais que se fale de sucessão, o grande trunfo de Pinto da Costa não é a habilidade política, é a habilidade humana, e essa não se ensina, é inata. Hoje já não há presidentes que tenham vindo do hóquei em patins ou do boxe. Vêm todos do gabinete, e os que não vêm não têm estofo para resistir aos políticos profissionais. Quando Pinto da Costa sair, por morte ou doença (vai a caminho dos 75 anos?) o Porto não será o mesmo, e nada se mantém - ou melhora ou piora. Alguém acredita que o Porto consiga fazer melhor do que o que fez desde 1977? O nível pode até manter-se durante alguns anos, mas os clubes são os seus homens, e este Porto é Pinto da Costa. Depois dele, outro Porto virá. Um Porto com pouco dinheiro, entenda-se.

3 - Já não falta muito para que apenas uma equipa portuguesa por ano consiga estar na Liga dos Campeões. Para o Porto a Liga dos Campeões tem sido a sua máquina de suporte vital. Sem as suas receitas (que existem apenas graças ao sucesso desportivo regular) o Porto estaria enterrado em banalidade interna, porque não consegue gerar outras. Dois anos seguidos sem Liga dos Campeões atirariam o Porto para uma crise profunda. Dois anos sem ganhar o campeonato e perdendo a pré-eliminatória para uma equipa francesa, espanhola ou italiana. É assim tão difícil de imaginar nos próximos cinco? O Porto vai ganhar oito campeonatos seguidos? A sério?

4 - Há uma razão muito forte para o Porto precisar do Sporting e o Sporting precisar do Porto neste momento: o Benfica está a um passo de se reerguer das cinzas.
Talvez apenas a história venha a dar a devida importância aos resultados financeiros alcançados por Luis Filipe Vieira, e é bem possível que ele já lá não esteja quando os resultados desportivos os acompanharem.
O insucesso desportivo de Vieira deve-se, sobretudo, ao facto de ele não compreender a essência do sucesso desportivo: o espírito colectivo da equipa e o facto de os jogadores entenderem o que representam, e de representarem algo. Isso teria impedido a contratação de dezenas de jogadores para quem o Benfica nada representa e que nada no Benfica poderiam representar. Basicamente, os dirigentes do Benfica percebem pouco de futebol de alta competição, ao contrário de Pinto da Costa, que o conhece desde a raiz. Mas isso rapidamente se altera.
Dado o nível de receitas que actualmente consegue gerar, se o Benfica conseguir encontrar a ciência futebolística básica (como o Sporting encontrou, por exemplo) e aproveitar perto do máximo os jogadores que contratar, torna-se um problema quase insolúvel tanto para Porto como para Sporting, porque o próprio clube está noutra dimensão - económica, social e desportiva. Continua a ser o único clube verdadeiramente cosmopolita em Portugal, com uma capacidade de mobilização superior e, sobretudo, com uma sede de glória que não se consegue reprimir. Do Benfica os adeptos esperam tudo, e chega a ser assustador pensar o que poderia ser, hoje, o clube, se José Mourinho não tivesse saído. Um monstro saciado.
Não é por acaso que aparece a Benfica TV, e que Joaquim Oliveira anda preocupado e aparece mais nos jogos. Foi sobre o futebol que ele construiu o seu poder, e o poder é efémero. O momento da renegociação dos direitos televisivos, daqui a três anos, será o grande jogo de xadrez do futebol português para as duas décadas seguintes. A intenção do Benfica é clara: jogar com a sua grandeza para adquirir vantagem, ou seja, receber mais porque ninguém vende tanto como ele. O cenário de um Benfica a receber o dobro do dinheiro televisivo do Porto, com perto de cem mil sócios pagantes (basta uma vitória no campeonato para se chegar lá), capaz de comprar jogadores de classe superior e, acima de tudo, de os aproveitar desportivamente, é um pesadelo para os seus dois rivais. Para que não restem dúvidas, até dada a natureza universalista do clube e da própria cidade (e não é exagero), uma construção desse tipo colocaria o Benfica muito mais próximo, em essência, de um Barcelona do que de um Porto, e o Porto muito mais próximo de um Atlético de Madrid, sobretudo se perder a liderança.

Pinto da Costa sabe, de certeza, hoje, uma coisa (e é por isso que anda tão calado, porque está em guerra inflamada): a vida reservou-lhe para os últimos anos uma luta apenas comparável à que teve de travar, com o país inteiro, no final da década de 70, para devolver a dignidade ao seu clube. Em dimensão e importância, esta não lhe é inferior. Pinto da Costa sabe que o seu último grande serviço ao Porto é lutar contra as próprias leis do universo, que determinam a inevitabilidade dos ciclos e que, também neste caso, à grande glória portista se siga uma implosão de dimensão semelhante. E sabe que, provavelmente, a partir de certo ponto já não estará cá para o defender.

domingo, 22 de março de 2009

Dinheiro não compra honra

Dado que, a certo ponto, a promiscuidade entre clubismo, sentimento de injustiça e puro desatino levam a que já ninguém perceba bem o que se diz, convém esclarecer que, após a final da Taça da Liga, com o Benfica, no Algarve, Paulo Bento disse duas coisas completamente diferentes:

- que Lucílio Baptista tinha errado porque tinha sido pressionado, durante a semana, pelo Benfica, o que não acontecera da parte do Sporting (acrescentando mesmo que o Sporting não fazia isso aos árbitros);

- que Lucílio Baptista tinha premeditadamente estabelecido que não iria deixar o Sporting ganhar o jogo.


A primeira acusação revela desorientação. Não era aquilo que ele queria dizer.

Se fosse, não colocaria o ónus da questão quase exclusivamente sobre Lucílio Baptista, nem lhe lhe atribuiria a intenção explícita de errar como atribuiu poucos segundos depois. Se aquele tivesse sido apenas um erro provocado pela pressão psicológica do Benfica o Sporting não só não crucificaria Baptista, como crucificou, como seria mais directo e hostil relativamente ao Benfica.

Por outro lado, o que Paulo Bento disse não é verdade. O Sporting (através dele, na maior parte das vezes, e em conferências de imprensa, portanto de maneira muito explícita) comentou, ao longo do ano, bastantes vezes as nomeações dos árbitros e até dos fiscais-de-linha antes dos jogos, e até de forma muito mais intencional e concreta que o vago e praticamente informal "Não acredito!" que é atribuído a Luís Filipe Vieira num evento menor em que participava na semana que antecedeu o jogo. E não vão assim tão longe os tempos em que, antes de um jogo entre as duas equipas para o campeonato, o Sporting fez publicar no seu site um manifesto intitulado "Não nos esquecemos", em que enumerava uma série de casos antigos em que teria sido prejudicado frente ao Benfica. Nesse jogo, na Luz, o Sporting ganhou (por 3-1, salvo erro) com o primeiro golo a nascer de um penálti que não existiu, inventado por Liedson a um metro da linha de fundo. O guarda-redes do Benfica era Moreira. No final desse jogo o Sporting esqueceu-se de comentar a arbitragem. Não é verdade que o Sporting não pressiona os árbitros. Que não obtenha os resultados que espera é outra coisa.


A segunda é a verdadeira acusação que Paulo Bento faz a Lucílio Baptista e a Luís Filipe Vieira. Do que o treinador do Sporting acusa o árbitro e o presidente do Benfica, que fique bem claro, é de o segundo ter pago ao primeiro para o ajudar a ganhar a Taça da Liga. Corrupção pura e simples. Se não é isto que Paulo Bento está a dizer, então que se cale, porque já não pensa coisa com coisa. Mas é isto, precisamente, que ele estava a dizer, quando disse que estava a ser "roubado" com aquele penálti.

Se o estavam a roubar, o único beneficiado seria o seu adversário dessa noite, o Benfica, portanto só ele poderia estar a corromper. A roubar.

E poucos minutos depois Paulo Bento referia que já antes tinham tentado impedir o Sporting de ser segundo no campeonato e de ir à Liga dos Campeões. Ora, o que ele está a dizer, também aqui, é que o Benfica comprou árbitros para prejudicar o Sporting, porque o Benfica tem sido o clube em disputa com o Sporting pelo segundo lugar (apesar de ter terminado em quarto na época passada).

Para Paulo Bento, portanto, o Benfica pagou a Lucílio Baptista para ganhar aquele jogo.


O móbil desse crime - como ficou claro pela primeira página do jornal Record (que é uma espécie de braço armado do futebol do Sporting, dada a proximidade entre a sua chefia editorial e a estrutura profissional do futebol do Sporting), onde se noticiava "Lucílio salva Quique" - mais do que a própria Taça da Liga, seria aliviar a pressão sobre Quique Flores, que iria passar o seu primeiro ano no Benfica sem ganhar nada e estava à beira do despedimento, e consequentemente de mais um falhanço de Vieira, agora com a ajuda de Rui Costa.


O que se pretende concluir aqui não é se Paulo Bento tem razão ou não. É possível que tenha ou que não tenha. Se, por um lado, é estranho que Lucílio Baptista tenha escolhido uma maneira tão óbvia de roubar (é quase como assaltar uma loja cheia de gente a contar que ninguém perceba) e que tenha esperado tanto tempo para nem sequer decidir o jogo (pois limitou-se a empatá-lo, o que fica longe de garantir a vitória), na antítese também se pode argumentar que ele roubou quando teve oportunidade e quando se viu forçado a roubar, por estar já numa fase do jogo em que não tinha outra saída.

É uma discussão puramente especulativa, totalmente inconclusiva e, na verdade, irrelevante - se algum clube acredita que os seus jogos podem ser decididos premeditadamente pelos árbitros só tem uma coisa a fazer, que é não jogar a não ser com árbitros escolhidos pelo próprio clube. O resto é fogo de vista.


O que se pretende aqui discutir é o seguinte: será que é realmente injusto o Sporting ser prejudicado pelas arbitragens? Ou, perguntado de outra maneira, será que o Sporting é tão inocente no estado actual das coisas como pretende?


Ninguém, hoje, em Portugal, tem dúvidas de que Pinto da Costa corrompeu árbitros. Há evidências, muito para além dos casos de jogo ou dos títulos, de que isso é um facto. Se fez bem, se fez mal, se é justo, se não é, é outra discussão (é, aliás, a discussão que a maior parte dos portistas tem quando se fala nisso - não se aconteceu ou não mas se não é justo que tenha acontecido, quanto mais não seja por autodefesa) Mas nenhum sportinguista pode ter dúvidas de que Pinto da Costa manipulou árbitros. Isso inclui os dirigentes do Sporting.


Quando as evidências da corrupção de Pinto da Costa atingem níveis tão públicos, esclarecedores e comprometedores como os do processo Apito Dourado, o que faz o Sporting - que, recorde-se, se considera a maior vítima do sistema? Senta-se à mesa do grande mentor desse sistema, como se a pessoa que é acusada e a pessoa com quem conversa não fosse a mesma, aceita a sua proposta de amizade, sabendo perfeitamente que esse apoio é essencial para a sustentação da legitimidade pública de Pinto da Costa e do Porto enquanto intervenientes do jogo, e enterra a cabeça no chão, à espera que os restantes se digladiem para ver para que lado se há-de virar.

O que recebe o Sporting além do beneplácito de poder contratar o dispensado Hélder Postiga (ainda dando em troca um promissor júnior)? A simpatia e, eventualmente, uma dívida de Pinto da Costa.

É tão barato quanto isto o sentido de honra e dever de transparência dos responsáveis do Sporting.


Ninguém pode duvidar de que uma acusação sustentada e uma punição justa a intervenientes da dimensão de Pinto da Costa e do Porto representariam, por si só, o mais marcante e potencialmente decisivo momento na história da corrupção no futebol português. O Benfica poderia bem ir a seguir. Ninguém estaria a salvo. O momento, que não se duvide, é histórico.

Os dirigentes do Sporting sabem disso. Mas os seus actos, em vez de irem no sentido da libertação do futebol desse jugo de suspeição, correspondem à estratégia de alguém que prefere esperar para ver quem sai por cima, sem sujar as mãos. É um gesto tipicamente aristocrata, se se considerar que durante séculos a fio a arte do cultivo e do comércio pertenciam, na cabeça dos nobres, às classes indignas, apesar de serem esses nobres, no fim, os destinatários dos frutos do seu trabalho.


Enquanto o Benfica (pelas suas próprias razões e não necessariamente boas) mantém uma voz aberta e activa no Apito Dourado (mesmo nos tribunais), o Sporting cala-se e limita-se a declarações de circunstância, claramente desfasadas da importância do caso, preocupando-se em não atacar frontalmente o único implicado que representa alguma coisa de importante, que é Pinto da Costa.

E nem o argumento de que o Porto é tão culpado como outros (neste caso o Benfica) inviabiliza que a posição sportinguista ante o Apito Dourado seja totalmente incorrecta. O Sporting sabe a força que tem, sobretudo em aliança com o Benfica.

Tão-pouco colhe a tese de ter de esperar pela culpabilidade provada de Pinto da Costa: aquilo que a Justiça pode formalmente deduzir, com todas as suas limitações processuais, e o que o senso-comum obriga a concluir são duas coisas diferentes. E Pinto da Costa não estava a encomendar mesmo fruta para dormir a um conhecido proxeneta que também é agente de jogadores.

Toda a gente sabe que Pinto da Costa é culpado de corromper árbitros. Perante um crime, ficar calado não é ser inocente - é ser cúmplice.


A resposta à pergunta se o Sporting merece isto é que sim, que merece. Porque quando mais era precisa a sua acção para combater a corrupção troca a palavra por sossego e um Postiga.


É bem possível que o preço que o Sporting venha a pagar por esta fraqueza seja bem maior que o que a sua actual óptima gestão desportiva possa suportar, ou seja, que quando o barco estiver novamente direito lhe falte aquilo que aos seus dois rivais deverá sobrar, independentemente das razões que lhes assistam: orgulho e espírito de sobrevivência por terem combatido as batalhas e não apenas esperado que elas tivessem passado para sair da toca e reclamar o espólio.

Há coisas que o dinheiro não compra, e a honra é uma delas.