domingo, 22 de março de 2009

Dinheiro não compra honra

Dado que, a certo ponto, a promiscuidade entre clubismo, sentimento de injustiça e puro desatino levam a que já ninguém perceba bem o que se diz, convém esclarecer que, após a final da Taça da Liga, com o Benfica, no Algarve, Paulo Bento disse duas coisas completamente diferentes:

- que Lucílio Baptista tinha errado porque tinha sido pressionado, durante a semana, pelo Benfica, o que não acontecera da parte do Sporting (acrescentando mesmo que o Sporting não fazia isso aos árbitros);

- que Lucílio Baptista tinha premeditadamente estabelecido que não iria deixar o Sporting ganhar o jogo.


A primeira acusação revela desorientação. Não era aquilo que ele queria dizer.

Se fosse, não colocaria o ónus da questão quase exclusivamente sobre Lucílio Baptista, nem lhe lhe atribuiria a intenção explícita de errar como atribuiu poucos segundos depois. Se aquele tivesse sido apenas um erro provocado pela pressão psicológica do Benfica o Sporting não só não crucificaria Baptista, como crucificou, como seria mais directo e hostil relativamente ao Benfica.

Por outro lado, o que Paulo Bento disse não é verdade. O Sporting (através dele, na maior parte das vezes, e em conferências de imprensa, portanto de maneira muito explícita) comentou, ao longo do ano, bastantes vezes as nomeações dos árbitros e até dos fiscais-de-linha antes dos jogos, e até de forma muito mais intencional e concreta que o vago e praticamente informal "Não acredito!" que é atribuído a Luís Filipe Vieira num evento menor em que participava na semana que antecedeu o jogo. E não vão assim tão longe os tempos em que, antes de um jogo entre as duas equipas para o campeonato, o Sporting fez publicar no seu site um manifesto intitulado "Não nos esquecemos", em que enumerava uma série de casos antigos em que teria sido prejudicado frente ao Benfica. Nesse jogo, na Luz, o Sporting ganhou (por 3-1, salvo erro) com o primeiro golo a nascer de um penálti que não existiu, inventado por Liedson a um metro da linha de fundo. O guarda-redes do Benfica era Moreira. No final desse jogo o Sporting esqueceu-se de comentar a arbitragem. Não é verdade que o Sporting não pressiona os árbitros. Que não obtenha os resultados que espera é outra coisa.


A segunda é a verdadeira acusação que Paulo Bento faz a Lucílio Baptista e a Luís Filipe Vieira. Do que o treinador do Sporting acusa o árbitro e o presidente do Benfica, que fique bem claro, é de o segundo ter pago ao primeiro para o ajudar a ganhar a Taça da Liga. Corrupção pura e simples. Se não é isto que Paulo Bento está a dizer, então que se cale, porque já não pensa coisa com coisa. Mas é isto, precisamente, que ele estava a dizer, quando disse que estava a ser "roubado" com aquele penálti.

Se o estavam a roubar, o único beneficiado seria o seu adversário dessa noite, o Benfica, portanto só ele poderia estar a corromper. A roubar.

E poucos minutos depois Paulo Bento referia que já antes tinham tentado impedir o Sporting de ser segundo no campeonato e de ir à Liga dos Campeões. Ora, o que ele está a dizer, também aqui, é que o Benfica comprou árbitros para prejudicar o Sporting, porque o Benfica tem sido o clube em disputa com o Sporting pelo segundo lugar (apesar de ter terminado em quarto na época passada).

Para Paulo Bento, portanto, o Benfica pagou a Lucílio Baptista para ganhar aquele jogo.


O móbil desse crime - como ficou claro pela primeira página do jornal Record (que é uma espécie de braço armado do futebol do Sporting, dada a proximidade entre a sua chefia editorial e a estrutura profissional do futebol do Sporting), onde se noticiava "Lucílio salva Quique" - mais do que a própria Taça da Liga, seria aliviar a pressão sobre Quique Flores, que iria passar o seu primeiro ano no Benfica sem ganhar nada e estava à beira do despedimento, e consequentemente de mais um falhanço de Vieira, agora com a ajuda de Rui Costa.


O que se pretende concluir aqui não é se Paulo Bento tem razão ou não. É possível que tenha ou que não tenha. Se, por um lado, é estranho que Lucílio Baptista tenha escolhido uma maneira tão óbvia de roubar (é quase como assaltar uma loja cheia de gente a contar que ninguém perceba) e que tenha esperado tanto tempo para nem sequer decidir o jogo (pois limitou-se a empatá-lo, o que fica longe de garantir a vitória), na antítese também se pode argumentar que ele roubou quando teve oportunidade e quando se viu forçado a roubar, por estar já numa fase do jogo em que não tinha outra saída.

É uma discussão puramente especulativa, totalmente inconclusiva e, na verdade, irrelevante - se algum clube acredita que os seus jogos podem ser decididos premeditadamente pelos árbitros só tem uma coisa a fazer, que é não jogar a não ser com árbitros escolhidos pelo próprio clube. O resto é fogo de vista.


O que se pretende aqui discutir é o seguinte: será que é realmente injusto o Sporting ser prejudicado pelas arbitragens? Ou, perguntado de outra maneira, será que o Sporting é tão inocente no estado actual das coisas como pretende?


Ninguém, hoje, em Portugal, tem dúvidas de que Pinto da Costa corrompeu árbitros. Há evidências, muito para além dos casos de jogo ou dos títulos, de que isso é um facto. Se fez bem, se fez mal, se é justo, se não é, é outra discussão (é, aliás, a discussão que a maior parte dos portistas tem quando se fala nisso - não se aconteceu ou não mas se não é justo que tenha acontecido, quanto mais não seja por autodefesa) Mas nenhum sportinguista pode ter dúvidas de que Pinto da Costa manipulou árbitros. Isso inclui os dirigentes do Sporting.


Quando as evidências da corrupção de Pinto da Costa atingem níveis tão públicos, esclarecedores e comprometedores como os do processo Apito Dourado, o que faz o Sporting - que, recorde-se, se considera a maior vítima do sistema? Senta-se à mesa do grande mentor desse sistema, como se a pessoa que é acusada e a pessoa com quem conversa não fosse a mesma, aceita a sua proposta de amizade, sabendo perfeitamente que esse apoio é essencial para a sustentação da legitimidade pública de Pinto da Costa e do Porto enquanto intervenientes do jogo, e enterra a cabeça no chão, à espera que os restantes se digladiem para ver para que lado se há-de virar.

O que recebe o Sporting além do beneplácito de poder contratar o dispensado Hélder Postiga (ainda dando em troca um promissor júnior)? A simpatia e, eventualmente, uma dívida de Pinto da Costa.

É tão barato quanto isto o sentido de honra e dever de transparência dos responsáveis do Sporting.


Ninguém pode duvidar de que uma acusação sustentada e uma punição justa a intervenientes da dimensão de Pinto da Costa e do Porto representariam, por si só, o mais marcante e potencialmente decisivo momento na história da corrupção no futebol português. O Benfica poderia bem ir a seguir. Ninguém estaria a salvo. O momento, que não se duvide, é histórico.

Os dirigentes do Sporting sabem disso. Mas os seus actos, em vez de irem no sentido da libertação do futebol desse jugo de suspeição, correspondem à estratégia de alguém que prefere esperar para ver quem sai por cima, sem sujar as mãos. É um gesto tipicamente aristocrata, se se considerar que durante séculos a fio a arte do cultivo e do comércio pertenciam, na cabeça dos nobres, às classes indignas, apesar de serem esses nobres, no fim, os destinatários dos frutos do seu trabalho.


Enquanto o Benfica (pelas suas próprias razões e não necessariamente boas) mantém uma voz aberta e activa no Apito Dourado (mesmo nos tribunais), o Sporting cala-se e limita-se a declarações de circunstância, claramente desfasadas da importância do caso, preocupando-se em não atacar frontalmente o único implicado que representa alguma coisa de importante, que é Pinto da Costa.

E nem o argumento de que o Porto é tão culpado como outros (neste caso o Benfica) inviabiliza que a posição sportinguista ante o Apito Dourado seja totalmente incorrecta. O Sporting sabe a força que tem, sobretudo em aliança com o Benfica.

Tão-pouco colhe a tese de ter de esperar pela culpabilidade provada de Pinto da Costa: aquilo que a Justiça pode formalmente deduzir, com todas as suas limitações processuais, e o que o senso-comum obriga a concluir são duas coisas diferentes. E Pinto da Costa não estava a encomendar mesmo fruta para dormir a um conhecido proxeneta que também é agente de jogadores.

Toda a gente sabe que Pinto da Costa é culpado de corromper árbitros. Perante um crime, ficar calado não é ser inocente - é ser cúmplice.


A resposta à pergunta se o Sporting merece isto é que sim, que merece. Porque quando mais era precisa a sua acção para combater a corrupção troca a palavra por sossego e um Postiga.


É bem possível que o preço que o Sporting venha a pagar por esta fraqueza seja bem maior que o que a sua actual óptima gestão desportiva possa suportar, ou seja, que quando o barco estiver novamente direito lhe falte aquilo que aos seus dois rivais deverá sobrar, independentemente das razões que lhes assistam: orgulho e espírito de sobrevivência por terem combatido as batalhas e não apenas esperado que elas tivessem passado para sair da toca e reclamar o espólio.

Há coisas que o dinheiro não compra, e a honra é uma delas.

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