quinta-feira, 26 de março de 2009

A vídeo-prova da trissomia

Qualquer adepto do futebol em Portugal que sintonize a SIC Notícias e oiça o Rui Santos defender a vídeo-arbitragem poderá perfeitamente convencer-se de que não só foi ele quem teve a ideia como ninguém no mundo o compreende.
Se bem que seja verdade que o Rui Santos se tem em grande conta, neste caso ele é inocente: ele não tem culpa que noventa e nove por cento dos adeptos portugueses desconheça o desporto americano e não saiba que, lá, neste momento, a questão já tenha deixado de ser se se deve usar ou não os apoios tecnológicos à arbitragem para passar a ser como limitá-los e impedir que destruam o espectáculo desportivo.
Mas fica bem ao Rui Santos ser inocente, neste caso, porque a vídeo-arbitragem, afinal, é a panaceia dos inocentes.

Que não se confunda as coisas: não só acredito que se deve usar câmaras para ajudar os árbitros como acho que isso já está atrasado pelo menos quinze anos. O nível de profissionalismo do jogo já suplantava em muito, em 1995, aquilo que o rodeava, desde a estrutura competitiva à financeira, e sobretudo às regras e à arbitragem. Hoje, esta última componente é ainda a mais atrasada - embora todas elas estejam na Idade Média do profissionalismo se considerarmos as ligas dos Estados Unidos. O grande paradoxo do futebol é ser, ao mesmo tempo, a mais importante e a mais retrógrada modalidade do mundo. Noutras ocasiões voltarei a isto, mas hoje fico-me pela vídeo-arbitragem.

Nos países do Norte da Europa e Inglaterra a vídeo-arbitragem será, provavelmente - se for introduzida de maneira a não matar a fluência natural do jogo (e isso não é tão fácil como o Rui Santos diz, porque uma coisa é esperar sete ou oito vezes um minuto ou dois para que um jogador saia de campo, outra muito diferente é interromper o jogo durante cinco ou seis minutos dez ou onze vezes por jogo, e se não concordam experimentem gravar um jogo e pará-lo por quatro ou cinco minutos sempre que há uma decisão importante a rever) -, a vídeo-arbitragem será, dizia, excelente, porque fará aquilo que é suposto fazer: permitirá ao árbitro errar menos e tornar o jogo mais justo.
No Sul da Europa, onde o jogo não é tão importante como os clubes (e Portugal é um dos casos mais radicais nesse aspecto), as pessoas vão esperar que a vídeo-arbitragem sirva para fazer uma coisa que ela não conseguirá fazer: evitar que alguns clubes percam.
Não, na Europa do Sul a vídeo-arbitragem, ainda que melhorando o nível das arbitragens (porque impedirá alguns erros grosseiros) não só não eliminará a contestação como, a médio prazo, a irá alimentar. Porquê? Há uma frase que se costuma dizer e que é incorrecta, e induz a que se pense mal: diz-se que o erro faz parte do jogo, mas o que faz parte do jogo é a subjectividade, o que é diferente, porque só se aceita o erro se se compreender a subjectividade da decisão. Ora, com ou sem vídeo, a subjectividade mantém-se.

Coloquemo-nos ante situações reais.

- O penálti das Antas, que deu o empate ao Porto frente ao Benfica. Imaginemos que o Benfica pede para parar o jogo e reavaliar o lance. Pedro Proença recorre ao vídeo e percebe que o toque que ele julgou ver no pé de Lisandro, e que o levou a lançar a perna como se tivesse sido rasteirado, afinal não existe. No entanto, repara que há uma mão de Yebda no peito de Lisandro. Considera, contudo, que não foi por isso que Lisandro caiu (tanto que se projectou para a frente, e não se deteve, como aconteceria se tivesse sido puxado ou obstruído). Não marca o penálti. No dia seguinte os portistas iriam querer crucificá-lo por não marcar a falta com o braço. Caso a marcasse, os benfiquistas iriam querer crucificá-lo por ter assinalado uma falta, no entender deles, inexistente. O que era ainda menos desculpável se se considerasse que até tinha tido o vídeo para desfazer dúvidas. "O pior cego é o que não quer ver", dir-se-ia, com o acordo de pelo menos metade dos jornalistas, se calhar até incluindo o Rui Santos. Ou seja, mesmo com vídeo-arbitragem Pedro Proença seria considerado corrompido - porque, já se sabe, em Portugal todo o erro tem uma mão negra atrás.
Repare-se que Pedro Proença seria considerado culpado não por ter errado, porque essa é uma certeza que ninguém poderia ter dadas as dúvidas levantadas pelo lance, mas por ter tomado uma decisão. Como foi, afinal.

- O lance do Miguel Vítor com o Nacional. A mesma situação. Pedro Henriques vê o vídeo. Se decide que a mão é intencional (e esse é o critério para marcar a falta, não o facto da bola ter tocado na mão, como ele atrapalhadamente referiu no dia seguinte) invalida o golo e os benfiquistas caem-lhe em cima. Se decide o contrário o Benfica ganha o jogo e a outra metade do país conclui que ele só mudou de opinião porque era o Benfica. "Em Alvalade não mudava de opinião, garanto-te", dir-se-ia nos cafés, com plena certeza.

- Vamos mais longe? O lance do golo que deu o campeonato ao Benfica frente ao Sporting - e aqui estou mesmo a eliminar completamente o factor-subjectividade uma vez que se trata, na minha opinião, do mais sensacional parafenómeno sociológico português em cem anos, em muito superior até às visões de Fátima, e em que seis milhões de pessoas parecem incorrer numa espécie de autismo mútuo e tacitamente combinado, de negação das evidências, apenas para não perderem o direito moral a uma vitória no campeonato. A sério: os benfiquistas simplesmente RECUSAM admitir que tenha havido falta do Luisão sobre o Ricardo, e mantêm-se unidos nesse código secreto como se as suas vidas de adulto dependessem disso.
Ora, a falta é, pura e simplesmente, evidente. Se o Sporting teria sido ou não campeão não sei, porque faltavam mais 100 minutos de campeonato, mas duvido que não o fosse.
Paraty revia o lance. Insistia no erro. Prova de culpa para os sportinguistas. Corrigia-o. Imperdoável para os benfiquistas. Mesmo que não estivesse errado, passava a estar, assim como hoje está, para os benfiquistas, certo, apesar de estar errado. O vídeo? Ora, o vídeo era a prova do crime, pois então!

- Mais: os fora-de-jogo. Qual é a parte do corpo que conta? O pé? Qual, o da frente ou o de trás, que impulsiona o corpo (não é de uma vantagem que se trata?) O peito, como no atletismo? A cabeça, que também pode marcar golos? E se duas cabeças estiverem lado a lado, com diferenças tão pequenas que uma câmara nem sequer consegue medir? Quando o jogo continua a coisa acaba por passar, mas agora não: com o jogo parado, a imagem parada, o país parado à espera de uma decisão, o árbitro tem de decidir - mesmo que não lhe passe pela cabeça como. Alguém que critica os fiscais-de-linha deveria assistir ao vivo a um jogo da linha lateral, assinalar as jogadas que lhe parecem fora-de-jogo e gravar o jogo, para depois, em casa, ver quantos erros cometeu.
Nesse processo perceberia uma coisa evidente: se quem assinala o fora-de-jogo é um árbitro, o momento que conta não é quando a bola parte mas quando o árbitro vê o avançado que a vai receber. Ora aqui está uma evidência física que não precisa de vídeo-vigilância. No entanto, nunca ouvi ninguém dizê-la.

- E as agressões nos cantos? Será possível evitar, agora, esses penáltis? Se um treinador pedisse para rever o lance o que é que o árbitro diria? "Não é falta"? Mas é claro que é falta, e é claro que é penálti! E tem de marcar!

- Passemos ao vídeo-árbitro, isto é, ao quinto elemento, que está, supostamente, fechado sozinho numa sala a ver o jogo pela televisão, como no râguebi. Esse quinto elemento (cujo nome seria objecto de notícia na TSF, na Renascença, nos jornais, enfim, como todos os outros), porque é que ele é diferente dos outros? Vamos imaginar que nesse jogo das Antas o vídeo-árbitro é o Lucílio (não vai haver cursos especiais para vídeo-árbitros, pois não? Os vídeo-árbitros são os árbitros do quadro da Liga). Seja qual for a decisão que o Lucílio tomar, ele é culpado.

Só para acabar, o melhor sistema de vídeo-arbitragem é o da NFL, a liga profissional de futebol americano. As equipas têm um membro da equipa técnica e um especialista de regras a ver o jogo noutra sala fechada (como passará a acontecer cá) e sempre que há uma decisão contra eles que pode ser sujeita a correcção avisam, em tempo real, o treinador de campo, que toma a decisão de pedir a paragem do jogo para visionamento pelo árbitro principal num ecrã situado junto ao campo.
Porque é que tem de ser o treinador a decidir? Porque o futebol americano é um jogo de contacto permanente e de muitas faltas não assinaladas, exactamente como o futebol europeu, e para evitar que cada jogo parasse de três em três minutos os treinadores são responsabilizados pelos seus próprios maus julgamentos. Como? Se a decisão for corrigida nada acontece, mas se ela se mantiver a equipa que a pediu deixa de poder utilizar um dos descontos de tempo a que tem direito, o que, naquele jogo, pode ser a diferença entre ganhar e perder.

Podemos utilizar esses sistema cá, e dizer, por exemplo, ao Paulo Bento, que passa a vida na linha lateral a dar bitaites porque lhe saem baratos, que pode pedir as paragens que quiser mas por cada uma que se revelar inútil terá de jogar com menos um jogador durante quinze minutos. Agora a sério, mesmo a sério, acham que o Paulo Bento preferia arriscar ou ia continuar a preferir mandar bitaites em noventa por cento das vezes que se diz roubado? É que eu quase que apostava mais na segunda hipótese. Até o estou a ouvir, no fim do jogo: "Porque é que não pedi para rever tal jogada? Não é óbvio? Da maneira como as coisas são contra nós era praticamente estar a tirar um jogador à equipa, porque o árbitro jamais mudaria de opinião mesmo que não tivesse razão, só para nos prejudicar" Depois disso apareceriam os fóruns na Internet a darem-lhe razão, o Rui Santos a admitir que se calhar ele tinha motivos para duvidar porque o Sporting já tinha sido prejudicado ene vezes, os outros a dizer que não, etc.
Ficção? Pois, pois...

Podemos limitar o número de situações em que a vídeo-arbitragem é aplicada, estabelecer parâmetros racionais, optimizar o sistema, meter mais e melhores câmaras, fazer trinta por uma linha, mas daqui a uns anos vamos estar a chegar à conclusão de que a vídeo-arbitragem veio a ser um factor de agravamento da suspeição e mais um balde de gasolina para a fogueira. E inevitável, o que é pior, pois de facto não a utilizar é ainda mais absurdo.
É claro que tudo isto é ridículo, porque é o desrespeito absoluto do jogo, mas é o que é.
Novamente irá aparecer alguém a dizer que a única e infelizmente monótona opção bule com o nosso fundo cultural e diz-nos que a única forma de não matarmos o jogo é estarmos preparados para aceitarmos perder um campeonato por causa de uma decisão de arbitragem.
E o que isso dói cá dentro?

E isto é verdade mesmo que, como estou convencido de que acontecerá, venham árbitros estrangeiros e libertos da trissomia do nosso futebol apitar os jogos de Benfica, Porto e Sporting, e mesmo que os seus nomes só sejam conhecidos à chegada ao estádio.

Sabem, às vezes os velhotes do International Board têm alguma razão em não forçar o jogo a rebaixar-se à pior natureza das pessoas. Eles devem saber que aspirinas não curam cancros.

Sem comentários:

Enviar um comentário