segunda-feira, 6 de julho de 2009

O cigano mais rico do mundo

Houve tempos em que ser iberista era motivo para ser atirado de cabeça da torre da Sé. Hoje, ser nacionalista é ser parolo, provinciano, ultrapassado, significa não compreender que o mundo já não tem fronteiras e que, com a globalização e a Internet e a União Europeia e todas essas invenções da nova filosofia, não faz sentido ser-se nacionalista. Geralmente (e é isso que é realmente irritante) os adiantados mentais até nos dirigem um tom paternalista quando nos tentam explicar que uma coisa é ser patriota, a outra é ser nacionalista.

Nestes momentos, para não perder a cabeça, tenho de recorrer à artilharia pesada, e então faço uma espécie de campeonato na minha cabeça entre iberistas e nacionalistas. Só o faço porque sei que vou ganhar, entenda-se. Tenho a jogar do meu lado Fernando Pessoa, e do outro não se encontra ninguém melhor do que a avantesma do José Saramago. Ora, o Saramago está para o Pessoa como a unha para o polegar: uma é bicho, o outro é homem.

O que é que me irrita solenemente nesta história do Ronaldo?

Que a cabeça do Ronaldo só chegue até ao Real Madrid.

Que qualquer idiota no mundo embarque no chavão de que o balneário do Real Madrid vai ser muito problemático, por causa dos egos, e do dinheiro, e dos lugares no onze - e que todos eles estejam completamente convencidos de que descobriram a pólvora. Ainda ontem, na SIC, o iluminado Jorge Baptista, que trabalha "para a FIFA" (e assim se percebe como é que o futebol é o desporto mais atrasado do mundo a seguir ao jogo da malha), realçava que, "na minha opinião", vai ser muito complicado gerir aquele balneário.
Irrita-me porque, além de ser estúpido, é estúpido. Se há coisa que a entrada de Ronaldo e Kaká vai fazer ao balneário do Real Madrid é melhorá-lo, e por várias razões:
- quem lá está sabe que não há lá ninguém melhor, e que em qualquer equipa do mundo com Kaká e Ronaldo seria sempre eles e mais mais 9, sem discussões;
- quem gosta de ganhar gosta de jogar com os melhores, porque vai ganhar mais vezes. Não há nada pior para um balneário que perder, ainda para mais da maneira como o Real perdeu no ano passado. Aposto que o balneário do Real Madrid nunca esteve tão mal como no dia em que levaram 6-2 do Barcelona em casa;
- tanto o Cristiano Ronaldo como o Kaká são dois profissionais de excepção. No Manchester o Ronaldo já era vedeta e nunca teve verdadeiros problemas porque o seu profissionalismo era intocável. Quando alguém trabalha tanto como Ronaldo ou Kaká ninguém tem moral para lhes arranjar guerrinhas - até porque, sabe-se, arrisca-se a perder, chame-se ou não Raúl. Aliás, estou plenamente convencido de que o Real só pagou o que pagou pelos dois porque sabe que compra dois profissionais exemplares. Florentino não arriscaria tanto se se tratasse de jogadores cujo comportamento fosses questionável. Ele sabe que Ronaldo nunca deixará um treino mais cedo para ir filmar um anúncio, como Beckham. Só se o obrigarem, e aí acredito que seja ele a querer sair, porque, apesar de se divertir fora do campo, do que ele gosta mesmo é de jogar à bola;
- o balneário do Real Madrid já é uma porcaria. É uma espécie de Benfica vezes cinco. O jogador tem de saber jogar, falar e tomar partidos. É muita política. É tudo demasiado representativo. Diz-se que o Barcelona é mais que um clube porque representa uma cultura, mas esquece-se que o Real Madrid é exactamente a mesma coisa, só que, no seu caso, a cultura que representa não é a de uma região autónoma mas de um ideal imperialista castelhano, do qual é o principal bastião. E aqui nem sequer estou a dizer que é bom ou mau, apenas que é assim. Injectar futebol neste balneário só lhes vai fazer bem.

Que os nossos futeboleiros não queiram ou não consigam entender as implicações da transferência de Ronaldo para o Real e prefiram maravilhar-se com as histórias da carochinha, fazer contas idiotas de como o dinheiro da transferência daria para comprar dez milhões de Playstations, 50 milhões de BigMacs ou 96 milhões de moedas de um euro ou, colocados diante de uma mera operação de feira para vender camisolas, nos cheguem a casa como burros a olhar para um palácio.
Que não entendam o que é o futebol, quem é o Ronaldo, o que é o Real Madrid, o que é Portugal, o que é Espanha, o que é, foi e virá a ser a relação entre espanhóis e portugueses, e que se fale da iberização do futebol ou do Real Madrid e de um Mundial ibérico como se fosse uma benesse que os espanhóis nos dão, o privilégio de nos deixarem viver no seu país, de nos deixarem pensar que somos iguais a eles.
Que, nas cabecinhas de minhoca dos portugueses com um microfone à frente ou uma caneta na mão, tudo pareça reduzir-se ao dinheiro, à diferença entre salários mínimos e ao carro com que andamos.
Isto choca-me, acima de tudo, porque parece não se compreender que o dinheiro, seja 94 milhões ou 940, é só dinheiro, e que há coisa que o dinheiro não pode comprar, não por serem demasiado caras mas porque não estão à venda, só podem ser ganhas e, depois de perdidas, têm de ser reconquistadas. Pergunto-me se algum dia algumas pessoas perceberão que, sem alma, por mais bronzeada que tenham a pele, estão vazias.

E irrita-me, sobretudo, mas irrita-me mesmo, não ter visto ninguém a dizer que há uma ausência incontornável e inaceitável na apresentação da camisola do Ronaldo. O homem que tornou possível, ao rei florentino, tomar o trono de assalto, e que deixou de existir a partir do momento em que se tornou um empecilho no negócio da venda de roupa.

Luis Figo.

Tenho acompanhado esta saga no site da Marca e acreditem que não me lembro de ver, uma única vez, o nome de Figo num título.

Irrita-me que ninguém tenha salientado, por exemplo, que o convite a Eusébio, além de rebuscado, é uma desconsideração a Figo e ao próprio Eusébio, usado como um macaco amestrado por um tipo que queria humilhar o segundo melhor jogador português de todos os tempos exibindo para isso o primeiro na sua feira de vaidades.

Figo representaria, ao mesmo tempo, Portugal, o Real Madrid e o Sporting. Como Ronaldo, foi eleito melhor jogador do mundo. Tal como Ronaldo, foi a bandeira de um projecto. E o que a ausência de Figo nos demonstra é que, tal como ele, no dia em que Ronaldo se tornar incómodo para o imperador e não for à bola com as suas regras, vai ser descartado e desconsiderado. Como foi Queirós, independentemente dos seus méritos. Porque é essa a natureza do animal.

Irrita-me que quem tem a obrigação de aconselhar Eusébio não lhe tivesse dito para comparecer no Santiago Bernabéu, apenas, se Figo também fosse convidado.

Irrita-me que o Ronaldo não tivesse usado a sua influência para levar lá Figo, o seu ídolo muito mais do que Eusébio e o jogador que o liderou na selecção enquanto ele era ainda apenas um tenrinho com muito jeito para jogar à bola.

Irrita-me que o selecto embaixador de Portugal em Madrid, um tipo com três nomes e fala afectada, mais fascinado com o convite de Florentino aos 30 mil portugueses de Madrid (mais 30 mil camisolas...), "que o presidente endereçou através da minha pessoa" (meu Deus...) do que com o seu dever para com um homem que representou Portugal em Espanha melhor do que alguma vez ele conseguirá representar, não tenha dito, logo de entrada, que a ausência de Luís Figo daquela "cerimónia" seria inaceitável e um insulto aos portugueses que trabalham em Espanha, incluindo a Ronaldo.

À força do seu trabalho, Figo foi o verdadeiro criador do futebolista português moderno, incluindo de Ronaldo. Foi o capitão da nossa selecção nacional e é um exemplo de honra e carácter para qualquer jovem português, futebolista ou não. Prova disso é que, como ele mesmo admitiu, a certo ponto arrependeu-se de ter trocado o Barcelona pelo Real Madrid, mas mesmo assim assumiu o seu compromisso e viveu com o erro. Por causa disso tornou-se um jogador marcado e desrespeitado como não merecia. Mas a sua palavra ficou.

E Figo, que é maior que o Real Madrid, não merecia o que lhe fizeram no domingo.

Irrita-me, em conclusão, que os portugueses, alguns portugueses, espero que uma minoria, não entendam aquilo que Portugal realmente é para os espanhóis: o acampamento cigano que fica no terreno baldio atrás da sua bela mansão virada para a Europa onde eles vêm buscar o que lhes interessa, a baixo preço, e deitar fora o refugo, venha ele em formato de resíduos radioactivos ou poluição quimíca, cultural ou económica. O acampamento cigano que será o primeiro a ser aterrado no dia em que eles decidirem que têm de expandir o seu condomínio privado porque já tem não têm mais espaço para os seus ricos à beira-mar.

Mas isto sou eu, que sou um parolo e não gosto de dinheiro.

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