quarta-feira, 27 de maio de 2009

Os (noventa e) cinco por cento que faltam

Há uma coisa que me faz bastante confusão no futebol: o começar do princípio.
Quando um treinador sai, por exemplo, como agora com o Quique, e os se jogadores lamentam e dizem que "não se pode andar todos os anos a começar do princípio". A ideia que dá é que o treinador novo chega e vai ensinar um a um como meter o pé à bola, como correr para a frente, como avançar em bloco, como defender o atacante directo, como fazer uma desmarcação, como meter um passe, quando rematar, enfim, dá ideia que aqueles marmanjos, que jogam à bola há vinte anos, de repente são uns debiloidezinhos que têm de aprender outra vez o que têm obrigação de saber.

A maioria dos treinadores pode não gostar nada desta ideia, porque no fundo todos os treinadores têm pena de não poderem, eles próprios, entrar dentro de campo, e acreditam que eles é que são fulcrais no sucesso, mas eles sabem que, numa boa equipa, com bons jogadores, a contribuição de um treinador está nos pormenores, porque noventa e cinco por cento do futebol já lá está, na química da equipa.

Atenção que, ao mais alto nível, nas grandes equipas, em que tudo funciona bem, os pormenores podem valer tudo e acabar por decidir o sucesso. Nesse caso, um treinador realmente é o elemento fulcral porque aporta à equipa o que lhe faltava, aqueles cinco por cento extra. Há vários casos, de entre os quais Guardiola é o último exemplo.
A equipa do Barcelona é, fundamentalmente, a mesma do ano passado e, para todos os efeitos, quase a mesma de 2006, tirando Ronaldinho e Deco. Na altura funcionou, depois gripou, e este ano, mudando de treinador, o Barcelona não "começou do princípio", obviamente. Começou do patamar onde estava. Mudou de treinador, mudando também, com isso, de paradigma, mas mantendo, evidentemente, as bases tácticas e técnicas, e com isso passou de não ganhar nada a ganhar tudo.

O Chelsea, antes de Mourinho, era uma espécie de Arsenal: andava sempre lá em cima mas acabava no degrau de baixo, quer no campeonato quer na Europa. Mourinho, evidentemente, não ensinou ninguém a jogar à bola - ensinou-os a jogar melhor e a ganhar, e só não foi campeão europeu logo no primeiro ano por causa de um golo fantasma.

Há mais tempo, Fabio Capello chegou ao Real Madrid numa altura de profunda crise de resultados. Num único ano o Real sagrou-se campeão europeu, o primeiro de três títulos europeus em poucos anos. Não começou do princípio. Começou de onde estavam. Se tivesse começado do princípio nunca teria sido campeão europeu.

A ideia de começar do princípio que os jogadores do Benfica transmitem dá quase uma ideia de orfandade, de ficarem desamparados no mundo, à mercê de um novo treinador que lhes ensine um bê-a-bá que devia ser, como no Porto ou no Sporting, oitenta ou noventa por cento da capacidade-base da equipa.

Se a mudança de treinador é assim tão dramática para uma equipa só há duas explicações:
- ou a equipa não funciona porque não funciona, porque os jogadores não se entendem, não têm química, ou qualidade, e nesse caso é preciso mudar de jogadores, porque nada cresce de uma equipa que não é uma equipa;
- ou a equipa não funciona porque os jogadores ou os treinadores não trabalharam como deve ser, e estão agora preocupados em "começar do princípio" quando, durante o ano, quando se deviam preocupar em aproveitar o tal "excelente treinador", não fizeram nada por ele.

Se os jogadores trabalharam bem não podem considerar que vão "começar do princípio". As bases do jogo colectivo são exactamente as mesmas para qualquer treinador, seja ele de ataque, de defesa ou lá do que for. Dizer que há um tipo futebol diferente que requer adaptação pode ser verdade, mas é falacioso, porque continua a ser futebol, o que muda são pormenores.

Mudar de treinador, assim como suportar a pressão dos resultados, só pode ser problemático para quem não sabe jogar futebol.


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