domingo, 24 de maio de 2009

Cornos mansos

Ponto prévio: sou Benfica e sou doente, apesar dos últimos anos terem atenuado bastante essa doença. Mas não sou irrealista nem sou injusto, penso, e sei que pelo menos desde o campeonato ganho com os dois golos do César Brito no Porto (pelo menos) o Benfica não mereceu ganhar nenhum, e nunca jogou à campeão.
Se hoje tivesse havido um cortejo em Lisboa por o Benfica ser campeão eu já estava a dormir para o lado porque esta equipa, como a de Trapattoni, como a de Toni (à excepção - e que excepção - do jogo dos 6-3 em Alvalade), jamais marcaria uma época e não deixaria nada de válido para o futuro. É uma equipa fraca, com pouca fibra, escassa personalidade e muito pouco Benfica na sua genética para significar qualquer coisa na história do clube, mesmo que tivesse sido campeã.

Se fosse um cortejo pelo Sporting estaria com uma dor de corno considerável mas encaixaria com o desportivismo possível, porque a equipa do Sporting merecia ser campeã. Aliás, estou plenamente convencido de que a única diferença entre o Porto e o Sporting este ano (além de um orçamento que é quase metade um do outro) foi a bagagem de confiança e estofo que resulta de se ter seis ou sete campeonatos ganhos em dez anos, contra dois, e a experiência de inúmeros jogos europeus de alta pressão. O Porto chega a Alvalade em crise, ainda na primeira volta, e ganha o campeonato, evidenciando a diferença de estaleca entre as duas equipas .
Mas há qualquer coisa de indecente e nauseante nestes festejos do Porto.

É impossível pôr em causa a qualidade da equipa do Porto e o trabalho dos seus jogadores e treinadores. Mas a autêntica campanha eleitoral em que anda Pinto da Costa desde há uma semana, e que se deve prolongar pelo menos durante mais outra depois de ganharem a Taça, é obscena. É uma exibição de impunidade, uma demonstração de força sobre os fracos, a ostentação do "quero, posso e mando, e vou continuar a mandar enquanto eu quiser porque não há ninguém neste país capaz de me impedir". E porque é que isto é assim? Porque se um dirigente do Benfica tivesse sido apanhado com a boca na botija como ele foi não iria passar uma semana em que o assunto ficasse esquecido. Pinto da Costa não o permitiria.

A opinião pública, neste país, resume-se a uma centena de pessoas, se tanto, que são as que emitem opinião nos jornais, televisões e rádios, e que pretendem, de cada vez que o fazem, interpretar o sentir popular e misturá-lo com a sua visão pessoal. No futebol esse universo fica reduzido a mais ou menos vinte pessoas, entre directores, editores e analistas ocasionais. Os programas de opinião popular são, regra geral, exercícios de boçalidade e iliteracia.
Ora, o que os opinadores da comunicação social nos transmitem, com as suas meias-palavras, as suas tibiezas semânticas, as metáforas e figuras de estilo que camuflam o medo de bulir com Pinto da Costa e com o Porto, essa espécie de paneleirismo militante em que ninguém tem a audácia de comprar uma guerra que tem de ser comprada sob o risco de se perder a dignidade para se falar sobre qualquer outro assunto relativo à verdade desportiva ou sequer à regeneração do futebol português, o que eles nos dizem, com a sua complacência, é que não se importam. Que sabem que estão a ser enganados mas que não faz mal, que preferem estar de bem com quem os engana a arranjar uma discussão.

Dada a familiaridade da personagem com alternadeiras e profissionais afins, pode dizer-se que Pinto da Costa, com a exuberância juvenil com que vai fazendo discursos, dizendo piadas e gozando com o triunfo, é a mulher da noite que se prepara para sair de casa, vestida em plumas e mini-saia, à procura de alguém com quem se deitar, e os opinadores, que elogiam muito a toilette (leia-se equipa) da dita mulher são o marido que prefere esconder-se na casa-de-banho, a fazer de conta que está ocupado para depois, quando ela chegar, de manhã, poder perguntar por onde é que ela andou e fingir que está zangado.

É esta espécie de corno manso que forma a opinião pública do futebol português.

Eu já fui jornalista desportivo, já cobri o dia a dia de Benfica e Sporting, em alturas complicadas (Vale e Azevedo...), e sei que é preciso ter coragem para se estar lá, no terreno, todos os dias, e fazer as perguntas que doem - que são as que interessam. Sei porque era um menino a quem mandavam fazer um trabalho de homem, e mesmo os homens feitos muito raramente o conseguem fazer. Quando não é o medo é a política, a diplomacia, as bocas para alimentar em casa, carreiras, o jogo de interesses de quem tem de trabalhar com e não contra, apesar de a obrigação, em muitas ocasiões, ser confrontar e não aguardar.
Mas também sei outra coisa: a pressão para não levantar ondas começa nas chefias. Quem manda nos jornais faz sentir, claramente, a quem está no terreno, que a prioridade não é descobrir alguma coisa, não é revelar ou confrontar, mas sim estar bem com as pessoas. Mesmo as polémicas têm limites que esses supostos líderes da redacção não estão dispostos a ultrapassar, basicamente porque têm medo.

É assim que se explica que nos três jornais desportivos, eventualmente por razões diferentes, o Apito Dourado, e sobretudo as acusações a Pinto da Costa, só tenham tido destaque quando já eram incontornáveis, quando ele foi à polícia e até parecia mal não se fazer primeira página disso quando todo o país não falava de outra coisa. E era capaz de apostar a minha casa em como não houve nenhum director de jornal que tenha dito a um jornalista qualquer coisa como isto: "Vais ter com o Pinto da Costa e vais confrontá-lo. Vais estudar o processo e fazer-lhe as perguntas difíceis e eu vou defender-te aconteça o que acontecer, e se for preciso ainda te arranjamos protecção privada durante uns tempos, mas não vais largar o osso até teres o que é preciso para pôr a nu toda esta podridão."

Para que conste, o melhor que os jornais desportivos conseguiram arranjar foi tornar o Eugénio Queirós, uma espécie de boy for the job preocupado apenas em fazer a apologia do Grande Caudilho do Norte y sus muchachos, na grande sumidade nacional em matéria de Apito Dourado. Se o Pinto da Costa fosse Salazar o Eugénio Queirós era o António Ferro.

O que qualquer jornal desportivo deveria ter feito quando o caso ganhou os contornos históricos que ganhou era criar uma sala de guerra (ou duas, uma em Lisboa e outra o Porto), com alguns elementos seleccionados, blindada, dedicada unicamente a investigar todos os factos do Apito Dourado e, partindo daí, a desfiar a teia do sistema.
Sim, isto é assim tão importante.
O homem que marcou uma era na história do futebol português, uma das suas três principais figuras de sempre, ofereceu prostitutas a árbitros e deu um envelope de dinheiro a um árbitro três dias antes de um jogo que esse árbitro ia apitar. Nunca houve nada de tão importante no futebol em Portugal. Este poderia ser o momento em que o futebol começaria realmente a valer a pena para quem gosta dele.

Em vez disso, o corno manso manda alguém tirar fotografias à mulher na discoteca e continua a fazer de conta que ela foi lá para dançar.

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