segunda-feira, 11 de maio de 2009

O verdadeiro especial

Passaram há dias 35 anos desde o 25 de Abril de 1974 e o único projecto que resultou plenamente, em Portugal, neste período, foi o Futebol Clube do Porto. A democracia tornou-se numa mamocracia que, quando o leite secar, forçará a mudança de regime político, as pessoas, apesar de haver mais quem saiba ler, escrevem pior e não se entendem, têm aviões e carros para viajar para onde quiserem mas não têm dinheiro para isso e dessa forma pedem emprestado a quem o inventa, e na hora em que for preciso pagar ninguém vai receber porque os tribunais terão, pura e simplesmente, deixado de funcionar, e a polícia já não se distinguirá dos ladrões. É, enfim, um país em construção, aceite pelos seus pedreiros livres e engenheiros contratados como um entre tantos outros, iguais na decadência. Nada de anormal, portanto.

O Porto (clube), pelo contrário, funciona. É a única coisa que funciona em Portugal. É, na leitura vulgar, um projecto de sucesso. Mas só o é porque não há projecto. Nunca houve projecto. Não é do Porto, nem é do país, não é por uma qualquer fatalidade: é, porque é. O projecto não existe, aqui nem em lado nenhum. Quando alguém fala em projectos, fala, na verdade, em vontades. Um projecto, uma construção normativa em que são tomadas acções específicas tendo em vista objectivos específicos previamente definidos, através de um processo linear, nunca resultou, e nunca resultará. Não existe.

O que existe são pessoas. As pessoas criam um projecto. As pessoas determinam um projecto, no seu sucesso ou insucesso. O projecto são as pessoas. As pessoas encontram-se, ou mobilizam-se, têm vontades comuns, actuam, e as coisas começam a acontecer. Quando as pessoas mudam, as acções alteram-se, o que era suposto ser um projecto diverge, às vezes para melhor, outras para a dissolução. Seja como for, o suposto projecto nunca existiu, porque um projecto, na verdadeira acepção do termo, não muda - ele é, por natureza, soberano, e tudo deve ser enquadrável nele. Um projecto, por definição, não se adapta, são as pessoas que se adaptam a ele. Na prática, contudo, é o contrário que permite a continuação do "projecto".

O projecto do Porto tem dois nomes: José Maria Pedroto e Jorge Nuno Pinto da Costa. Quando Pinto da Costa, então ainda chefe do Departamento de Futebol, percebeu que Pedroto era o homem que poderia fazer com que o seu clube ganhasse mais vezes, aliou-se a ele. Não havia, nessa altura, qualquer projecto de afirmação do Norte. Isso foi uma consequência da aliança, e se é verdade que as vitórias do Porto constituem uma afirmação de identidade da cidade também o é que ela não foi a motivação da dupla. A motivação era ganhar. Pedroto admitiu, um dia, que se tivesse ido para outro clube não teria empunhado a bandeira da região, e que se o fizera foi porque percebeu que ela os ajudaria a alcançar os seus objectivos.
Insinuar que Pinto da Costa imaginava o trajecto do clube nos 30 anos seguintes e que o actual sucesso estava planeado desde o início é tão absurdo como admitir que, ao inventar a máquina a vapor, James Watt já antevia a descoberta da energia nuclear. A Revolução Industrial mudou o mundo, mas não foi projecto algum: foi apenas uma sucessão de pessoas a dar azo às suas ideias, às vezes as mais elementares.
O Porto não tem qualquer projecto. O seu sucesso não foi engenhosamente desenhado para representar uma cidade e muito menos uma região, ainda que consiga juntar o útil (a mobilização dos portistas, sobretudo portuenses) ao agradável (o orgulho local). O Porto, como disse um jogador na festa do tetracampeonato, alimenta-se de títulos. Esse é o seu único projecto: arranjar maneiras de continuar a ganhar. Como? Alimentando-se de pessoas e de coincidências.

O meu objectivo aqui não é falar do Porto, é falar do "projecto". Do que faz o sucesso de um "projecto".
Um "projecto" nasce da ambição de uma pessoa, e fortifica-se quando mais pessoas se juntam a ela. Um "projecto" é, acima de tudo, uma rede de relações humanas. Os melhores "projectos" nascem de factores aleatórios. No futebol, por exemplo, pode ser uma união de dirigentes, como pode ser o encontro feliz de alguns jogadores que se entendem em campo ou até a empatia entre uma personalidade e o público.

No Benfica houve apenas um momento em que o "projecto" de Luís Filipe Vieira funcionou: quando, a meio de uma temporada mais uma vez encaminhada para o desastre, com a equipa treinada por Trapatoni a jogar menos que nada e os empates a sucederem-se a empates, apareceu Mantorras, um jogador de efeito instantâneo nos adeptos, a marcar dois ou três golos em momentos-chave. Muito mais que o campeonato de Veiga, de Trapatoni ou do apito do Paraty, aquele foi o campeonato do Mantorras. Só o futebol permite uma história assim.

É sobre este tipo de afinidades que se constrói um projecto. No sentido inverso, é menosprezando este tipo de afinidades que os projectos ruem. Os projectos cimentam-se valorizando as mais-valias naturais, os acasos, se se quiser, aproveitando o melhor que há nas pessoas e o melhor que o mundo traz.

Desvalorizar o factor aleatório a bem de um projecto é enfraquecê-lo. Se um projecto não é capaz de aceitar que precisa de um angolano coxo para funcionar, mesmo que ele lhe dê algo que só ele pode dar, então o projecto não presta, e não serve para nada, porque não está preparado para ser especial. Se alguém dissesse que o pescador Paulinho Santos era, em potência, um centro-campista com capacidade para se tornar indiscutível na Selecção Nacional de futebol, seria considerado louco, mas a conjugação de Paulinho Santos ao Futebol Clube do Porto tornou-o num ícone.
Aproveitando o melhor que há nas pessoas, o projecto, agulhando o seu curso ao sabor dos tempos, mantém-se. Para o fazer, contudo, tem de haver princípios.

Para um projecto funcionar têm de funcionar as coisas que fazem as relações humanas funcionar. Tem de haver lealdade, palavra, honra e, sobretudo, compromisso, na vitória e na derrota. A máxima ausência de egoísmo determina a maior probabilidade de sucesso de um projecto, porque esse sucesso se baseia no melhor que a pessoa tem para dar e não no melhor que a pessoa sentir que tem a receber. Para uma pessoa egoísta os únicos projectos que têm valor são os individuais - e isso não está errado, é assim mesmo. Para um projecto colectivo funcionar as pessoas têm de ser altruístas.

O projecto do Porto é, acima de tudo, uma pessoa, que se chama Pinto da Costa e que tem vindo a aproveitar, desde há trinta anos, o melhor que as pessoas lhe trazem, a bem de uma causa maior, que é o Porto-clube, e que ele ama acima de si próprio. Só isto. É uma pessoa, mais outras pessoas. Tudo o resto é consequência da integridade humana.

Provavelmente os benfiquistas estão tão afogados em mágoas e inveja que só conseguem pensar em desculpas e álibis, e não percebem que entender isto, plenamente, é o primeiro passo para, por um lado, iniciar o seu próprio "projecto" e começar a aniquilar o "projecto" do Porto (que, alimentando-se de vitórias, pode, logicamente, morrer de fome antes de morrer de velhice). Também é provável que, por esses motivos, não consigam ver o que isto significa.

É que, neste momento, no futebol português, só há uma pessoa verdadeiramente especial além de Pinto da Costa. Alguém em quem se encontra o altruísmo, o espírito de missão e a qualidade humana que definem, só por si, a viabilidade de qualquer tipo de projecto. Alguém que não utiliza o nome por vaidade, que não utiliza o poder na busca da glória pessoal e que não precisa do projecto a não ser pela total necessidade que o sucesso do projecto implica para a sua felicidade pessoal. Essa pessoa é Rui Costa e a sua situação é tão especial que Rui Costa está exactamente no lugar em que devia estar, no momento em que devia estar.

Um evento assim é tão raro que as pessoas não o conseguem perceber senão a posteriori. Para os observadores de antanho, Pinto da Costa era um arrivista, rebelde e desrespeitoso do statu quo. Hoje, para as mesmas pessoas, a meio de um percurso que só não contemplou uma guerra civil ou o assassinato (até ver...), é um messias.
Para os observadores de agora, Rui Costa é um bom rapaz, com boas intenções, não mais do que isso, e de boas intenções está o cemitério cheio. Arrisco, no entanto, e no momento em que Rui Costa conheceu o seu primeiro falhanço enquanto dirigente do Benfica, dizer que no futuro outros analistas irão classificá-lo como o salvador do Benfica, e uma das cinco maiores figuras na história do futebol português, pelo que a sua acção contribuiu para a transformação do mesmo. Porque toda a história de Rui Costa é demasiado perfeita para fracassar. Admito, até, um cenário em duas fases, em que Rui Costa sai do Benfica em desencanto para voltar, alguns anos depois, e concretizar os seus sonhos. Porque há coisas de que simplesmente não faz sentido desistir. Seria como desistir de nós próprios - impossível.

Para os mais fundamentalistas (no pior sentido, daqueles que levam a lei à letra sem a tentarem sequer interpretar) será pecado dizer que Rui Costa é maior do que o Benfica. Mas é exactamente isso. Rui Costa é maior que o Benfica. Como Pinto da Costa é maior do que o Porto. Porque os clubes, os "projectos", são engrandecidos pelas pessoas, e o Porto seria, sem Pinto da Costa, muito menor do que aquilo que é com ele, assim como o Benfica só faz sentido, enquanto "projecto", se conseguir abarcar esse evento especial que a história lhe trouxe e que se chama Rui Costa.

Um adepto que se torna jogador, que se torna profissional, que se torna campeão, que sacrifica a carreira a bem do clube, que sacrifica outra carreira para voltar a vestir a camisola e fazer-se seu dirigente, que se torna bandeira lançada sobre uma fogueira para a apagar, que se esquece de si próprio para fazer aquilo que sente que tem de fazer, é algo de tão perfeito que o próprio cinismo nos obriga a duvidar dessa versão quase utópica e a procurar adversativas. A verdade, no entanto, é tão simples como aparece à realidade: Rui Costa é a pessoa mais valiosa que passou pelo Benfica, se calhar, desde a sua origem, representa a essência do benfiquismo, e o Benfica, enquanto conjunto de pessoas, é inferior ao benfiquismo desta pessoa.
Num "projecto" tem de haver pessoas inquestionáveis, que, só por si, o representem, e sem as quais o "projecto" não exista. Porque os projectos são as pessoas. O Benfica só será maior se crescer em redor de Rui Costa. Rui Costa tem de ser incondicional, tem de estar acima de qualquer suspeita, não acima de crítica mas sempre fora de alcance dos franco-atiradores. Porque não há dúvida que Rui Costa se coloca, a ele próprio, abaixo do Benfica, e que se sentir que não é capaz de fazer do Benfica maior ele mesmo sairá do clube, para o servir melhor. Mas tem de ser quando ele entender, e se entender.

O que me assusta, realmente, como benfiquista, é pensar que as vistas turvas dos benfiquistas não vão além de um Quique qualquer, ou de meia-dúzia delas, e que ao ver uma árvore morta não consigam ver o seu messias, sentado do outro lado, encostado a ela, olhando para a floresta. Sem ninguém ao lado.

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