quinta-feira, 21 de maio de 2009

A vida também é um cabeleireiro

O Collina está em Portugal para ganhar umas massas a tentar explicar aos nossos gestores como liderar - o que é curioso, porque o trabalho de um árbitro é iminentemente individual e não implica grande necessidade de liderança. Se vem falar de como gerir crises, já faz mais sentido, uma vez que o trabalho do árbitro é, sobretudo, tentar levar até ao fim o processo de agressão mútua que é um jogo de futebol.

Sim, eu também saltei, durante uns tempos, para a carruagem do Collina, onde entrava toda a gente que dizia que ele era o melhor árbitro do mundo. Até perceber que ele não era o melhor do mundo - era apenas o mais fácil de reconhecer.

O Collina foi um árbitro muito bom. Tinha um sentido do jogo que os árbitros nórdicos, por exemplo, não têm, porque sabem as regras todas e fazem-nas cumprir mas não entendem muito bem o futebol e por isso seguem a letra da lei mas não o seu espírito. Fazia-se respeitar pelos jogadores porque não se colocava a um nível superior, e dessa forma, misturando uma dose de autoridade intuitiva, os seus erros (que não eram poucos e nem sempre de somenos importância) eram relativamente bem tolerados por eles.

O que fez dele o "melhor árbitro do mundo", no entanto, não foi ser bom: foi ser careca. Sem a careca o Collina seria apenas mais um bom árbitro. Foi a careca que lhe deu notoriedade mundial. Collina foi o primeiro árbitro pop, por causa da sua imagem, e só pôde ser o "melhor do mundo" porque as pessoas o conheciam, o que não se passava com nenhum outro árbitro. Dizer que o Collina é o melhor do mundo é como dizer que a Madonna é a melhor cantora do mundo. Não é. É a que vende mais discos e é a melhor comunicadora. A cantar safa-se.

O Collina, porque foi o primeiro árbitro careca de nível mundial, tornou-se reconhecível. Até a minha mulher, que de futebol não pesca nada, sabia quem era o Collina antes de um jogo começar. "Este é que é aquele árbitro muito bom, não é?" E eu: "É."
Bom, não era só a careca. Também era os olhos esbugalhados e os braços compridos. Mas sobretudo os olhos esbugalhados.

Collina pertence ao Planeta Surreal. O Planeta Surreal é o sítio de onde vêm as coisas que não existem mas deviam existir, e com as quais as pessoas simpatizam porque lhes permitem sentir que não estão fechadas como um hamster numa caixa de sapatos sem furos para respirar. O Planeta Surreal é o plano perceptivo onde a ficção supera a realidade.
Não é suposto existir um árbitro completamente careca, extravagante, exuberante, de olhos esbugalhados e ainda por cima que sabe apitar. É surreal. Quando ele aparece, é nosso amigo. O Collina é como o Maradona (outro extra-terrestre, um gordinho de um metro e sessenta e pernas tortas que jogava à bola enquanto os outros tentavam não tropeçar): pode não ser o melhor, mas é o maior. "Collina, és o maior, pá!"

Isto da realidade, da surrealidade e da percepção que temos dela - aquilo a que chamamos de imagem - tem muito de coincidente e parece mesmo que se rege pelo código do acaso. Os momentos que a pautam são aqueles em que os símbolos, as imagens ou os destinos se cruzam.
Neste domingo o Benfica foi jogar a Braga e ganhar por 3-1, sem saber bem como (sabe-se que teve a sorte do jogo, o que para esta equipa é fundamental e geralmente chega), e o Quique arranjou maneira de se fazer expulsar já nos descontos.

Primeiro pensei que tinha sido para não ter de ir ao Estádio da Luz no último jogo, uma espécie de "Ai é assim, não presto" Então passem bem!". Depois, nas conferências de imprensa, ficou a ideia de que tinha sido para não ter de cumprimentar o Jesus. Foi o que o Jesus disse. O Quique disse mal do Jesus. Sim, talvez tenha sido por isso.

O Jesus é assim: é do povo. O Quique é dos jornais, das televisões e das rádios. Fala bem e certinho, e até é espanhol. O Jesus é mais do pontapé na virilha. Vai tudo a eito nos treinos e fala como se estivesse à mesa do café na Madragoa - apesar de ter nascido da Amadora, mas enfim, ninguém é perfeito.
Pelo menos essa é a imagem que os jornais nos dão. Quando dizem, por exemplo, que o Rui Costa não o queria por questões de imagem. O que se quer dizer é que o Rui Costa não quer o Jesus porque ele é rafeiro e o Benfica é para cães de raça. O Rui Costa também vem da Amadora, note-se.

Atenção, porque o Jesus pertence ao Planeta Surreal.
Não é suposto um castiço com pinta de fadista e uma cabeleira ruiva, que nunca deu um pontapé decente numa bola de futebol, ir a Barcelona aprender com o Cruyff quando o Cruyff era o melhor treinador do mundo e o Barcelona a melhor equipa do mundo, voltar, andar a treinar equipas de segunda divisão ou da primeira baixa e chegar lá acima. Aqui há uns anos correu a história de que o Jesus, quando ainda estava no Amora, ou no Setúbal, tinha aberto um negócio de linhas telefónicas eróticas. Não sei se é verdade ou não, mas o simples facto de a história ser verosímil define a pessoa. Não seria nada de anormal.
Eu sempre gostei do Jesus, e achei muito mal que ele tivesse contratado um assessor de comunicação. Gosto do produto genuíno. Do "hádem", do "vaião para a frente", do "subem" e dos motocardes. Para ser igual aos outros não quero, aprendizes de Queirozes é o que não falta por aí.

Não é suposto o Jesus treinar o Benfica, sobretudo porque as pessoas têm uma imagem do Benfica que não é real - olham para uma instituição transcendental quando, na verdade, o Benfica é um clube de bairro que conquistou o mundo precisamente por o ser, por ser povo nobre, e não essa nobreza populista que foi para lá comer a carne e cuspir o osso.
Ter o Jesus a treinar o Benfica é potencialmente assustador, quer pela positiva quer pela negativa, porque, de uma maneira bizarra, faz sentido.
Faz sentido ter uma personagem incongruente a treinar uma equipa perdida de um clube incongruente. Bate a bota com a perdigota. É mais bater a perdigota com a bota. Quando tudo o resto falha, sem que percebas porquê, arrisca. Tenta fazer o contrário. Deixa as coisas acontecer. Experimenta. Não és tu que mandas, é o destino.
Caramba, Rui, em caso de dúvida, e já que vais mesmo despedir o espanhol, olha para o cabelo! Existirá no mundo algum cabelo mais messiânico do que a juba branca do Jesus, que ainda por cima se chama Jesus e mastiga a pastilha elástica de boca aberta? Isto é ou não é bom demais para ser verdade?! Já imaginaram o Jorge Jesus de barba, no banco do Benfica, por exemplo? Há alguma coisa que invoque mais a Arca de Noé?

No Benfica, há dois caminhos possíveis para Jesus: ou acaba a mandar caralhadas aos jornalistas numa conferência de imprensa ou se torna numa lenda, a do fadista da Brandoa que arrancou o Benfica do fundo do poço. Qualquer coisa que fique pelo meio não é minimamente aceitável.

Este domingo, aliás, foi um muito bom dia para mim, no sentido do Planeta Surreal. Vi a primeira página do Expresso com o primo do Sócrates empoleirado em cima de uns postes vermelhos, em Shaolin, a tentar mostrar às pessoas que não tinha fugido, que tinha mesmo ido aprender kung-fu com os budas. Foi um dos momentos altos do meu ano, uma espécie de prenda de aniversário antecipada. Fiquei extremamente satisfeito por ver que o meu país ainda consegue sair da caixa de sapatos desta maneira - e também me divertiu, confesso, imaginar o rapaz, com o cabelo de betinho louro rapado (mas com uma fatiota janota, cheia de cores garridas, ao contrário dos trapos dos chinocas pobrezinhos, porque até na miséria é preciso manter as distências), a levar bordoadas na tromba dos monges, sem se poder vir embora enquanto não forem para a gaveta as falcatruas do primo mais velho, que afinal mal o conhece.

Mas o que é mais espantoso é que, no mesmo dia, houve outro momento que superou esse. Se o primeiro me fez rir o segundo deixou-me boquiaberto a olhar para a televisão. Era o Figo, com uma cabeleira azul e preta à Serafim Saudade (era para ser à Maradona, mas os italianos não sabem que, na verdade, é à Serafim Saudade) a anunciar que ia deixar de jogar futebol.

Foi um daqueles momentos inesquecíveis vindos em serviço expresso do Planeta Surreal. O Figo, com a careta mal-encarada do costume, a barba de estivador ao fim do dia, o típico olhar complicado de quem tem de pensar cinco vezes antes de responder a uma pergunta para não dar bacoradas e a dizer que, um dia, sim, quem sabe, talvez pudesse vir a ser presidente da Federação, mas com aquela expressão que gritava "Quem é que pôs esta ideia na cabeça destes tipos?! E agora como é que eu me safo desta?".

O Figo, o exemplo acabado da seriedade, do profissionalismo, da austeridade futebolística, o Grande Génio Cinzento que nunca saiu da linha de montagem que o transformou de miúdo esforçado em melhor futebolista do mundo, o homem que ignorou a maior guerra psicológica do futebol saindo de Barcelona para o Real Madrid, passando por cima dela como o operário que vai para a fábrica e tem de fazer pelo menos quinhentos e cinquenta parafusos antes do almoço, tinha acabado de decidir, no último domingo da sua carreira como jogador de futebol, que ia pôr uma cabeleira maluca.

Sim, foi um bom domingo. Obrigado por tudo, Figo, mas sobretudo muito obrigado pelo último dia.

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