domingo, 10 de maio de 2009

Uma bola política

Há uns anos, quando trabalhei na Bola (em A Bola...), escrevi uma parte substancial de uma publicação em fascículos sobre a história dos grandes clubes de futebol do mundo. Calhou-me, por exemplo, praticamente toda, senão mesmo toda, a secção espanhola: Real Madrid, Barcelona, Atlético de Bilbau, Atlético de Madrid, Real Sociedad e Valência, se não me falha a memória.
Já passou algum tempo, mas fiquei relativamente bem familiarizado com o futebol espanhol - o que significa que fiquei também mais conhecedor da política espanhola, porque é impossível dissociar um do outro, sobretudo num país onde a política se faz a partir de uma matriz regional.

Talvez nem toda a gente saiba que Espanha é uma invenção recente. O próprio nome, Espanha, só surge já no século XVII, antes disso era Leão e Castela e Aragão. A designação Hispânia vinha de um tempo anterior aos romanos e dizia respeito a toda a península, as Espanhas. Arrogar-se reinvindicar o nome de toda a Ibéria sob a sua bandeira, esquecendo o reino "hispânico" independente de Portugal, foi apenas mais uma tentativa de, politicamente, reclamar uma autoridade natural sobre a península, incluindo sobre este país a ocidente, o único que, hoje, se mantém liberto da manta imperialista de Castela - a nação que, menos tendo de identificativo entre todas as que existem na Ibéria, mais poder acumulou graças a um talento inato para a política e a diplomacia. A causa federalista é e sempre será a mais importante de Espanha/Castela. É a única que realmente tem porque não sabe fazer mais nada.

Euzkadi (País Basco) e a Catalunha não tiveram a mesma sorte, ou o mesmo mérito, de Portugal - e sim, eu disse sorte. Provavelmente porque são mais ricos. As duas regiões são as mais proficientes de Espanha, devido sobretudo à actividade industrial e comercial.
A Catalunha é, desde sempre, um território híbrido, encravado entre a Europa Central, sobretudo França e Itália, e Espanha, cujos governantes sempre a cobiçaram. Tem uma identidade cultural muito mais forte do que Castela, por exemplo.
O País Basco não é nada de nada. É um corpo estranho na península, um resquício de um povo do Norte europeu que por aqui se manteve e participou na Reconquista, continuando, contudo, de tal forma isolado que o seu idioma, perfeitamente alieno, sobreviveu até aos nossos dias. A sua existência, por si só, é uma aberração histórica, e muito mais o é a sua anexação por um Estado com o qual tem escassas afinidades.

No princípio do século XX Euzkadi e a Catalunha foram dois dos principais centros dos movimentos socialistas, republicanos e anarquistas de Espanha, e por isso também foram das regiões mais castigadas durante a Guerra Civil espanhola, vendo nela enterrarem-se, até hoje, as pretensões de independência.
Nessa altura o Athletic, de Bilbau, e o Futbol Club Barcelona, fundado pelo suíço Juan Gamper, já existiam, e podiam mesmo ser consideradas as duas maiores potências do futebol espanhol. Grande parte das Taças de Espanha conquistadas por ambos, sobretudo as do Athletic (que já ganhou 23), foi conquistada nesse período pré-Franco.

Durante a ditadura fascista o F. C. Barcelona foi um dos grandes bastiões da resistência ao regime, e uma ameaça de tal forma persistente à política nacionalista de Madrid que todos os métodos, até a prisão e assassinato dos seus dirigentes ou o fogo posto à sua sede, se tornaram aceitáveis para esbater a sua vitalidade. O Governo central chegou, a certa altura, a nomear um presidente para o clube, com o objectivo principal de o tornar um veículo de propaganda favorável. Esse dirigente haveria de virar a casaca, e tornar-se um dos mais acérrimos defensores do barcelonismo e da autonomia catalã.

O caso de Di Stefano, que por si só determinou uma alteração de forças que subsiste até hoje, é paradigmático. O Barcelona teve contrato assinado com o jogador e com o seu clube na Colômbia, o Millionarios, onde jogava por estar futebolisticamente exilado da Argentina natal. Aí jogara pelo River Plate, que ainda detinha direitos sobre ele. O Real Madrid, protegido pelo regime, meteu-se ao barulho e arranjou maneira de Di Stefano assinar outro acordo e de o apresentar com a sua camisola. A Federação Espanhola viria a determinar que Di Stefano jogasse duas épocas pelo Real e as duas seguintes pelo Barcelona. Primeiro, o Barcelona aceitou, mas depois rejeitou o acordo, por orgulho ou, noutra versão, por pressões do Governo central. O Real Madrid ganharia as primeiro cinco Taças dos Campeões Europeus graças a Di Stefano, que até há alguns dias ainda era o melhor marcador da sua história. O Barcelona venceria a sua primeira quarenta anos depois.

Enquanto o Barcelona sempre foi o clube do cosmopolitismo, fiel à cidade com que se confunde, o Athletic, que sofreu ainda mais com a subjugação cultural e social de Euzkadi, é o oposto. No antagonismo com Espanha, contudo, são iguais.
O Athletic (que Franco obrigou a mudar de nome para Atletico de Bilbao por não querer nomes estrangeiros na Espanha unificada) mantém uma política anacrónica e orgulhosa de apenas jogar com futebolistas bascos ou com afinidade cultural ao país basco, mesmo num tempo em que as equipas podem colocar a jogar o número de estrangeiros que quiserem. São os próprios sócios quem o exige, na sua maioria.

A final da Taça do Rei jogada ontem em Valência, entre Barcelona e Athletic, ficará marcada como um dos grandes momentos políticos na história comtemporânea de Espanha, e certamente será invocada como nota de memória caso venha a acontecer uma segregação do Estado espanhol no futuro.
Quando tocou o hino, antes do início do jogo, uma grande parte dos adeptos no estádio assobiou-o de tal maneira que quase o tornou inaudível, mesmo com o volume mais elevado no sistema sonoro do estádio. Para que não fiquem dúvidas sobre o significado desse momento, e do federalismo subjacente a todos os orgãos estatais, a TVE, que transmitiu em directo a partida, interrompeu a transmissão poucos segundos após o início do hino, quando se percebeu o efeito do enorme coro de assobios. Transmiti-lo-ia durante o intervalo, mas censurado, manipulando o som de modo a passar imagens dos jogadores e alguns adeptos pró-espanhóis com um ruído muito mais baixo, como se os assobios tivessem sido insignificantes e de uma minoria. As expressões graves dos jogadores, contudo, reflectiam bem o que se passava. Para cúmulo a TVE disse que não tinha podido transmitir a cerimónia do hino em directo "por problemas técnicos lamentáveis".

O Barça ganhou 4-1 e deu festival, mas isso foi normal e secundário.

Falo disto porque o Benfica vai ter eleições em Outubro. Vão colidir, muito provavelmente, com as campanhas para as legislativas e/ou autárquicas, e o povo não vai deixar dúvidas sobre qual lhe interessa mais, sobretudo se aparecerem, como vão aparecer, vários candidatos
Não me surpreendia, por exemplo, que o Veiga começasse a aparecer nos jornais, lá para o Verão, a contar espingardas, dependendo muito de quem será o próximo treinador.

Mais ou menos ao mesmo tempo, no Porto, Pinto da Costa vai envolver-se a fundo na campanha do PS para as autárquicas, em apoio a Elisa Ferreira, uma dragona de ouro, a candidata à presidência, contra o arqui-inimigo Rui Rio, que o mandou ir beber água ao Douro assim que chegou à Câmara e foi, nos últimos vinte anos, o único verdadeiro foco de resistência ao seu poder.

Isto quer dizer uma coisa: já faltou mais para o habitual raspanete de Pacheco Pereira, com o seu ar tantalizado, de quem se sente mentalmente massacrado de tanto esperar por que as pessoas o entendam e venham à razão, sobre a importância absolutamente desproporcionada e irracional que se dá ao futebol em Portugal e à consequente completa banalização da vida pública. A indignação de Pacheco Pereira - que actualmente é mais abnegada, dando ele a entender que já desistiu de esperar que as pessoas comecem a pensar - vai atingir um volume inédito porque o Abrupto considerará que, se noutros tempos até se compreendia que as pessoas não sentissem motivadas para pensar em política, desta vez, com a maior crise económica em cem anos e tanta gente em desespero, pensar mais nas eleições do Benfica que na da República é uma pura e incomportável alienação de massas.

A arrogância de Pacheco Pereira em relação ao futebol não é injustificada. É normal que, quem não entende muito bem o futebol, acabe por ou o menosprezar ou o sobrevalorizar, por pensar que ou ele é pouco importante ou é o mais importante.
Se Pacheco Pereira alguma vez tivesse ponderado mais sobre o futebol e não negasse à partida uma ciência que não conhece perceberia porque é que não tem razão quando se revolta contra a promiscuidade entre futebol e política.
É porque, como argumentarei na altura própria (que deve ser lá para o fim do Verão), o que Pacheco Pereira entende por política é, na verdade, economia. O que ele entende por economia é, na verdade, costura. E o que ele entende por futebol é, na verdade, política. O bom futebol, pelo menos.

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