quarta-feira, 6 de maio de 2009

"Joga bonito!"

Jaime Pacheco é um dos maiores talentos desperdiçados do futebol português nos últimos vinte anos. Talvez seja uma vítima, talvez seja culpado, mas se Jaime Pacheco não é, hoje, o principal treinador da velha guarda (sendo que a velha guarda é aquela do treinador formado no balneário e no campo, não nas faculdades), é porque, a certo ponto, desistiu.

Os mais novos não podem lembrar-se dos primeiros tempos de treinador de Jaime Pacheco, ainda como jogador-treinador, no Paços de Ferreira, e dificilmente terão visto jogar a equipa do Guimarães treinada por ele em 1997, mas era uma autêntica máquina de futebol, muito mais do que o Guimarães de Cajuda, por exemplo, ou o Braga de Jesus. O Guimarães, que acabou em terceiro nesse campeonato, salvo erro, mas andou muito tempo a morder os outros, jogava bem, jogava forte e jogava bonito.
Talvez a história do futebol português moderno fosse outra se tivesse sido esse Guimarães de Jaime Pacheco a ser campeão e não o Boavista de Jaime Pacheco de 2001. Porque as duas equipas, apesar de treinadas pelo mesmo homem e tendo jogadores de valor semelhante, eram a antítese uma da outra. A diferença entre ambas foi que, entre uma e a outra, o treinador desistiu de jogar futebol. E que, apesar disso, foi campeão. A conjugação desses dois factores condicionou, até hoje, a qualidade futebolística de todas as equipas do campeonato português, à excepção do Porto e do Sporting, que têm uma escola própria. Essa vitória legitimou a estratégia do pontapé para a frente e da táctica da porrada para quem julga não ter meios para "jogar bem" e prefere "jogar para o resultado" - como se, de facto, as duas coisas fossem incompatíveis, quando é precisamente o contrário.

Talvez por ter perdido quando devia ter ganho, talvez por ter percebido que, sem a ajuda dos árbitros e da imprensa, a única forma de competir era deixando de lado a qualidade de jogo, talvez por ter chegado a um clube com uma cultura mafiosa, a verdade é que, em apenas dois anos, Jaime Pacheco se transformou de um treinador de ataque, capaz de pôr as suas equipas a jogar futebol, num treinador destrutivo, cuja filosofia de jogo (que até hoje se mantém) consiste em ganhar todos os duelos defensivos (incluindo-se aí fazer faltas uma vez que ganhar o duelo defensivo significa deixar passar apenas ou o adversário ou a bola, mas nunca os dois), destruir jogo, chegar ao ataque rapidamente e rematar depressa, para poder voltar à defesa, onde pode massacrar fisicamente o adversário, sem escrúpulos em recorrer a expedientes anti-desportivos se for caso disso. É o jogo negativo no seu esplendor. Não choca chamá-lo de anti-jogo.

É um tipo de jogo que, para resultar, tem de ser suportado por alguns requisitos prévios:
- precisa de ter a complacência dos árbitros, algo que nunca faltou no Boavista, presidido pelo filho do presidente da Liga, que usava esse cargo para escolher e corromper os árbitros e as suas classificações;
- precisa de ter um clube com uma cultura desportiva preparada para ele, o que não é o caso do Belenenses, por exemplo, onde Jorge Jesus deixou uma equipa feita para jogar futebol e onde os dirigentes de terceira categoria não sabem o que querem e como o querem, só sabem que querem alguma coisa porque, segundo eles, têm direito, historicamente adquirido, a tudo receber;
- precisa de ter uma equipa de suporte médico que permita ao seu número 10, por exemplo (na altura foi o Sanchez), ficar com um nível de cafeína no organismo semelhante ao de 49 bicas tomadas imediatamente antes do jogo, apesar de ele garantir que só bebeu uma Coca-Cola - 49, porque 50, legalmente, já é doping.
Sim, por incrível que pareça é verdade: para uma equipa conseguir superar fisicamente a outra durante 90 minutos ao nível do que fazia o Boavista era imprescindível este tipo de façanha médica. Não era do treino.

Tudo isto explica porque é que, para as dezenas de equipas pequenas que desde 2001 não tiveram presidentes da Liga, nutricionistas milagrosos ou uma total falta de vergonha, jogar "à Jaime Pacheco" tem resultado, quase invariavelmente, em fracasso.

No entanto, insiste-se. E porquê? Por um motivo ainda mais pernicioso: porque os portugueses se convenceram, por causa de alguma "vitórias morais", que para ganhar é preciso jogar mal.

Isto só acontece porque não se percebe a diferença entre jogar bem e jogar bonito. As pessoas vêm Ronaldo e Messi a driblar adversários, a dar toques de calcanhar e a fazer simulações sem sarem do mesmo sítio, e aceitam que é esse "jogo bonito" (uma invenção dos brasileiros, que podem fazer essas coisas todas sem perder a bola porque defendem à espera dela na sua grande área) que faz deles grandes jogadores. Como, geralmente, as fintas e toques de Ronaldo e Messi resultam no avanço da equipa, torna-se mais fácil confundir o jogo bom com o jogo bonito.
No Benfica, por exemplo, diz-se que o Di Maria joga bem porque faz muitas fintas. Só que, com o Di Maria a bola nunca chega à baliza. O "jogo bonito" transforma-se em "jogo mau".
Não há grande segredos: em qualquer desporto colectivo o ataque mais eficaz baseia-se no passe e no deslocamento dos jogadores. Quanto mais tempo um jogador tem a bola mais vulnerável se torna à marcação defensiva e, em mil jogadas de ataque, mil vezes uma bola passada chega mais rapidamente ao objectivo do que uma bola transportada em corrida.

O bom jogo é o jogo colectivo e o jogo rápido. Os alemães, por exemplo, desconhecem o jogo bonito. Na Alemanha ninguém finta. Mas toda a gente sabe fazer um cruzamento. Na Itália também ninguém finta, só os estrangeiros. Na Inglaterra, idem, ainda que sejam tecnicamente mais fracos, quer ofensiva quer defensivamente, e por isso não conseguem ter uma selecção vitoriosa, ao contrário dos outros dois.
Tem de ser visto como um sinal que o melhor jogador brasileiro dos últimos anos (à excepção de Ronaldinho, um extra-terrestre que conseguia jogar bem e bonito mas só quando saía a horas da discoteca) seja um finalizador puro, Kaká, cuja principal qualidade é o remate em corrida.

Nem sempre jogar bem resulta em vitória. A selecção de Portugal, por exemplo, perdeu o apuramento para o Mundial no seu melhor jogo, em Alvalade, com a Dinamarca. Logo se fizeram ouvir as vozes dos especialistas, dizendo que era preciso um estilo mais "pragmático" - ou seja, tendo menos a bola e batendo mais. Uma perfeita estupidez. O que era preciso era jogar melhor - defender melhor. Não era jogar pior.
Quando o Benfica fez algumas jogadas bem construídas frente à Académica e perdeu logo se ouviu que era preferível jogar feio e ganhar. Como se as duas coisas tivesse a ver uma com a outra. Burrice. O que era preciso era jogar melhor. Passar melhor, insistir, rematar melhor. E mesmo assim podia-se perder. Para quê insistir, então? Porque, como é comprovável em qualquer equipa ou selecção de sucesso continuado, jogar bem é o método mais eficaz de ganhar. Jogar bem não é fintar para o lado. Jogar bem é ser objectivo, executar bem, actuar colectivamente e jogar em velocidade e resistência. É possível jogar defensivamente e jogar bem. Jogar à defesa não é ser negativo. Ser negativo é fazer anti-jogo - fazer faltas a mais, queimar tempo, despachar a bola sem qualquer intenção ofensiva. Há muitas equipas inglesas que jogam defensivamente e não fazem anti-jogo. O público recompensa-as, comparecendo aos jogos. É claro que preferem um futebol atacante, mas aceitam um futebol defensivo, desde que seja honesto.
O mais interessante é que mesmo as equipas que apenas tentam jogar bem, sem terem jogadores para isso, acabam por adquirir vantagem em relação aos outros.

Em Portugal o problema de todos os "pequenos boavistas" (o Boavista vai a caminho da terceira divisão, já agora...) e de todos os "aprendizes de jaime pacheco" não é jogarem defensivamente - é jogarem desonestamente. Baterem a mais, caírem a mais, despacharem a bola sem critério, desrespeitarem o jogo e os adeptos. Felizmente, sendo o Homem um animal estúpido por natureza, não é impermeável. Pode ser lento a aprender, mas acaba por compreender, e hoje já se começa a compreender que o "jogar mal", se garante alguma coisa, é a falência. De todos: jogadores, clubes e do próprio futebol. Só o "bom jogo" sobrevive e tem hipóteses de triunfar.

Quem continuar a defender o contrário, apresentando resultados, está a contar com a ignorância das pessoas. Quem tiver disponibilidade para procurar mais resultados, muitos resultados, facilmente comprova que as equipas que jogam bem, perdendo algumas vezes, ganham muitas mais. Têm melhores resultados, os adeptos são mais felizes e o futebol é uma experiência melhor. Mesmo não jogando bonito. Jogar bem e bonito é para Ronaldos, Messis, Xavis. Mas talvez o melhor momento do ano, para Ronaldo, tenha sido o golo de livre contra o Arsenal na meia-final da Liga dos Campeões. Uma finta inesquecível? Não. Um pontapé excelente. Pura técnica.

O Benfica não ficou em terceiro por jogar bonito ou feio - ficou em terceiro por jogar mal, sem colectivo. O Porto não chegou aos quartos-de-final da Liga dos Campeões por jogar feio - foi por jogar colectivamente bem. O Sporting não levou doze golos do Bayern por ter batido pouco - foi por não ter jogado suficientemente bem, primeiro nos 45 minutos iniciais em Lisboa, onde não marcou, e depois nos primeiros trinta minutos da segunda parte, onde defendeu mal. Os doze golos já não têm nada a ver com futebol. Acontecem uma vez em cinquenta anos, como comprova o livro de recordes da UEFA.

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