segunda-feira, 22 de junho de 2009

O pato bravo

Um interregno na proposta para uma verdadeira Liga para um assunto que, afinal, tem tudo a ver com ela. O que é que toda esta verborreia sobre uma verdadeira Liga tem a ver com o PAPA? Comecemos pelo elo mais fraco. João Vale e Azevedo.

Há apenas uma razão para João Vale e Azevedo ser o único presidente de um grande clube português, até hoje, a ser condenado e preso por actividades ligadas ao futebol: ele era um extra-terrestre.

Não veio de dentro do futebol, não conhecia o meio, ignorava os métodos operacionais e, sobretudo, os mecanismos de defesa dos vigaristas da borracha, e com isso ficou vulnerável. Vale e Azevedo foi apanhado porque era um pato bravo no futebol português. Era um anjinho. Um pateta. Era tenrinho.

Pinto da Costa e Joaquim Oliveira comeram-no ao pequeno-almoço porque, se bem se lembram (quem tem idade para se lembrar), Vale e Azevedo não sabia quem era Pinto da Costa. Tinha uma ideia. Sabia mais ou menos. Já ouvira falar. Quando entrou para a presidência do Benfica e falava de Pinto da Costa na televisão ficava com aqueles olhinhos e o beiço de quando precisava de se concentrar para se lembrar de meia-dúzia de tópicos que havia estudado à noite sobre determinado assunto. Quando falava de árbitros só lhe faltava consultar as cábulas para não confundir penálti, expulsão e grande área.

Vale e Azevedo entrou no futebol convencido da sua genialidade e de que conseguiria, facilmente e sem precisar de se misturar com ninguém, duas coisas que para ele eram importantes: tornar o Benfica num clube vencedor e ao mesmo tempo ganhar bastante dinheiro em esquemas paralelos com transferências de jogadores, uma área que conhecia bem devido às suas ligações com empresários ingleses.
A Inglaterra, esclareça-se, é a pátria da grande chulice nas comissões paralelas em transferências de jogadores. É um esquema instituído entre os treinadores (os managers, que decidem quem é comprado), os agentes e as suas off-shore, que lavam o dinheiro. JVA limitou-se a importar o negócio, trazendo para Portugal um dos seus mais genuínos intérpretes, o espertalhão Graeme Souness - que preteriu Deco em favor do inenarrável Michael Thomas, por exemplo, porque com Deco não ganhava nenhum.

Foi a inocência que tramou Vale e Azevedo. Provavelmente só compreendeu que era um menino a brincar entre trambiqueiros de barba rija quando se viu trancado dentro de uma cela de prisão.
O coitado do JVA foi totalmente tragado por Pinto da Costa e pelo sistema do futebol, que nos últimos nove anos não fez mais que fortalecer-se.

Enquanto JVA se convencia de que para o Benfica dominar a pobreza franciscana que era o futebol em Portugal só bastava tornar a equipa menos emocional e fazer com que os jogadores se portassem como profissionais e se deixassem de mariquices, Pinto da Costa, vendo-se livre do incómodo Gaspar Ramos - uma espécie de contra-poder (ainda que inepto) nos bastidores, que saíra com Manuel Damásio - e dono e senhor dos meandros da arbitragem, não teve dificuldades em convencer José Roquette, eleito presidente do Sporting pouco tempo antes, a deixar-se desses disparates de "fazer o 25 de Abril do futebol".
PC, Roquette e respectivas entourages começaram a encontrar-se para tratar de estádios novos, de jogadores para trocar, de SAD's e de outros assuntos mais privados e nunca bem explicados, permitindo que, em 2000, após 17 anos de espoliação, o Sporting conseguisse, enfim, ganhar um campeonato, ante uma inédita complacência de PC, que pela primeira vez em muitos anos não se sentiu (nos jornais) escandalosamente prejudicado pelas arbitragens.

JVA mandava rasgar os ruinosos contratos com a Olivedesportos, ciente de que as receitas de novos acordos provavelmente cobririam o anterior e de que ainda sobraria dinheiro, e a tribo da bola espantava-se com a audácia daquele alienígena que não compreendia que essa Olivedesportos era a verdadeira trave-mestra da economia da selva, credora de todos os clubes, detentora dos seus futuros e espécie de braço-armado financeiro do sistema dominado por Pinto da Costa, ao mesmo tempo alimentando-se dele (até entrar, com a compra da PT Multimédia, no universo das vinte maiores empresas portuguesas).

JVA trazia jogadores de segundo plano de Inglaterra para ganhar algum e os índios locais espantavam-se pela desfaçatez com que os empresários locais, liderados pelo super José Veiga (em época áurea com as transferências de Figo e Zidane para o Real Madrid), alimentados à mão pelos Pintos do galinheiro, eram desprezados - eles que, industriados por PC, dominavam a arte do comissionamento clandestino, sabendo bem que chão pisar para não matar o negócio.

Em resumo, Vale e Azevedo caiu de pára-quedas no futebol português a meio do meio-dia, sem ninguém a cobri-lo, e foi o alvo mais fácil de abater na sua história.
Nos jornais, nunca se preocupando em desfazer a aura de arrivista, foi despido, esquartejado e deixado aos lobos, neste caso a Polícia, o Ministério Público e os tribunais, para quem a acusação e condenação de um vulgar (ainda que megalómano) Alves dos Reis que se regia pelas normais "leis do mercado" foi uma brincadeira de crianças.
Na hora da verdade, a Vale e Azevedo faltou, sobretudo, a cumplicidade e os laços de lealdade que unem os traficantes do futebol português, e que se estendem até às mais altas instâncias políticas do país, passando por todo o sistema judicial, desde a esquadra de bairro até ao mais elevado tribunal e a Assembleia da República. Faltou-lhe a estrutura e um verdadeiro conhecimento das coisas. Se tivesse sabido entrar na panelinha provavelmente ainda seria presidente do Benfica.

Ainda hoje há três momentos que definem perfeitamente o que foi a fulgurante e fenoménica passagem de Vale e Azevedo pelo Benfica:

- a ruptura de contratos de direitos televisivos com a Olivedesportos, que foi, facilmente, o acto mais revolucionário na história moderna do futebol português, e o único que ameaçou, na prática, fazer ruir o sistema corrupto instituído.

- o despedimento de João Pinto - que, na verdade, só pode ser mistificado por alguém com um sentido revisionista da história. João Pinto, independentemente do percurso que teve depois de sair do Benfica, representou, em todo o seu esplendor, a decadência da cultura benfiquista. Quando se podia ter tornado, se tivesse tido a inteligência para isso, numa das três maiores figuras na história do clube, resvalou, pelo contrário, para a acomodação. Se alguém há a culpar pela sua saída inglória do clube é, antes de mais, a ele próprio, que se deixou cair, ano após ano, numa vulgaridade futebolística que tornou o seu despedimento natural. E quem disser o contrário não sabe o que diz. O último ano de João Pinto no Benfica foi o de 1995, daí para a frente viveu à sombra da bananeira e só voltou a jogar a sério quando sentiu que isso era necessário, já no Sporting.

- a contratação de José Mourinho, que, como o próprio Mourinho explicou num dos seus livros, foi uma escolha pessoal de Vale e Azevedo. Os grandes pensadores do nosso futebol (colunistas, articulistas, opinadores de uma maneira geral) que actualmente fazem de Vale e Azevedo o grande satã e, ao mesmo tempo, endeusam José Mourinho, deveriam ser obrigados a ler, como tarefa humilhante, todos os dias, ao acordar, o que escreveram sobre a escolha de José Mourinho para treinador principal do Benfica, e continuar até ao momento em que Toni, um dos grandes protegidos da nação benfiquista nos jornais, tomou o seu lugar. Teriam, certamente, vergonha de pegar numa caneta.
É preciso recordar que, na altura, José Mourinho nunca tinha sido treinador principal. Era, também ele, um extraterrestre, e Vale e Azevedo foi considerado pouco mais que atrasado mental por apostar nele. Era a pessoa mais improvável do mundo para ter sucesso à frente da carruagem desenfreada que era o Benfica.

O que se pergunta, hoje, é o seguinte: onde estaríamos, actualmente, se Vale e Azevedo tivesse sido reeleito presidente do Benfica, se Mourinho nunca tivesse saído e se os direitos televisivos do Benfica tivessem sido renegociados fora do âmbito da Olivedesportos?
Independentemente de Vale e Azevedo ser o trafulhazito que era, estaria o futebol português onde está?
Duvido que alguma vez JVA tenha falado com um árbitro.
Chego ao ponto de perguntar: seria ainda Pinto da Costa dirigente desportivo? Arrisco dizer que não.

E assim chegamos ao PAPA.

O momento decisivo para o triunfo do sistema aconteceu quando Pinto da Costa e Joaquim Oliveira arquitectaram um plano para a tomada de poder no Benfica, nas eleições de 2000. Utilizaram todos os seus meios, de financeiros à comunicação social, para lançar uma lista de que o bonacheirão e manobrável (sobretudo a partir das duas da tarde) Manuel Vilarinho era o testa-de-ferro mas de que a verdadeira trave-mestra, o operacional, seria Luís Filipe Vieira, amigo de casa de ambos, figura espúria, já então, no futebol português, enquanto presidente do Alverca (uma criatura do género Gondomar mas para melhor), ligado a tudo o que era trambique mas, sobretudo, um aliado útil e sem escrúpulos na deposição de Vale e Azevedo.

O carácter rapace de Vieira, que lhe permitiu transformar-se de mero gandulo em milionário, formado na escola das piores ruas de Lisboa, depressa o virou contra o seu criador - Pinto da Costa - sobretudo a partir do momento em quem, contratando o anjo caído José Veiga para uma aliança diabólica que visava, simplesmente, a tomada de poder no vaticano futebolístico, Vieira assumiu a ida a jogo.
O título de 2004 foi alcançado executando à letra a pior cartilha do pintismo, e até hoje mantenho a convicção de que houve apenas um factor que levou à sobrevivência política de Pinto da Costa: a providencial cartada Mourinho, que lhe permitiu destruir, em campo, a coligação Vieira-Veiga, roubando ao Benfica as vitórias de que necessitava para se impôr como nova força do sistema.

Acima de tudo, é preciso compreender que desde 2000 que Pinto da Costa domina o Benfica porque foi ele quem inventou o actual Benfica, lá colocando um lacaio que, mesmo empenhando-se numa luta de usurpação do senhor feudal, não consegue, por falta de preparação, ascender ao poder. Falta-lhe a grandeza essencial.

O texto integral do Apito Encarnado, suposta e anonimamente (é só rir...) escrito por inspectores da Judiciária denunciando Luis Filipe Vieira como corrupto de primeiro escalão, é um hino ao sistema. Através dele Pinto da Costa elucida-nos a todos sobre o seu verdadeiro poder sobre Vieira: o conhecimento íntimo do indivíduo e a capacidade de o bater no seu próprio jogo, no qual Pinto da Costa é mestre, um jogo que conhece e domina a partir da raiz pois anda a jogá-lo desde meados dos anos 70, construindo, no processo, um castelo de lealdades que não é vulnerável a arrivistas.

O Benfica não tem hipóteses de destruir Pinto da Costa porque o seu presidente joga sob as mesmas regras. Está, por isso, derrotado à partida. A desonestidade, o logro, a manipulação, o obscurantismo, são a força integral do pintismo, mas também são a sua fraqueza. Sendo a sua estrutura fundamental, é pela sua corrosão que o sistema pode cair. Não se elimina Pinto da Costa sendo mais desonesto, mais dissimulado, mais manipulador, mais obscuro. Isso não vai acontecer. Só se o conseguirá jogando outro jogo - não um jogo um bocadinho mais limpo, mais tíbio, sem maldade, apenas com alguma malícia, como pretende fazer o Sporting há dez anos e sem sucesso, mas um jogo diferente. Um jogo limpo.

Propondo uma verdadeira Liga, por exemplo.

A grande questão, contudo, é outra: até que ponto está a massa benfiquista pronta a acreditar que um infante pode matar um leão?

O que seria necessário para que fosse eleito como presidente do Benfica uma pessoa que dissesse, por exemplo, que estava disposto a não ir às competições europeias durante dez anos se isso fosse o que era preciso para romper com a estrutura instituída do futebol português?

Até que ponto estariam os benfiquistas dispostos a aceitar alguém que dissesse que se o que é preciso para regenerar o futebol e expulsar Pinto da Costa é admitir que não foram apenas os últimos trinta mas os últimos setenta anos a serem corrompidos, e que se isso implicaria começar a contagem de títulos do zero, então que fosse?

Até que ponto não estarão os benfiquistas sempre mais dispostos a acreditar em qualquer Veiga que lhes apareça, por mais sujo que seja, a prometer títulos imediatos, por qualquer meio, do que em alguém que diga que o Benfica não precisa de títulos dos que se compram em casas de alterne?

Conseguirão eles perceber que isso não significa, verdadeiramente ganhar, mas continuar a caminhar na lama, sem brilho nem honra? Que trinta vitórias assim, trezentas vitórias, são iguais a nenhuma vitória?

Conhecerão os benfiquistas, e os portugueses, o conceito de honra? E estarão dispostos a pagar por ela o que ela exige?

Ou será que não existe, em Portugal, espaço para a honra?

Seremos assim tão baratos?

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