sábado, 27 de junho de 2009

Uma verdadeira Liga (III)

Não há muita coisa que não se consiga aprender com a História.

Em 1919 o basebol era o grande desporto americano. Já se competia profissionalmente há décadas e nele se movimentavam grandes somas de dinheiro. Mas isso atraía igualmente o lado mais obscuro do desporto, neste caso a manipulação de resultados por correctores de apostas.

Na final do campeonato desse ano, a melhor equipa do país, os Chicago White Sox, partiu como favorita frente aos Cincinnati Reds, com uma probabilidade de vitória de 5 para 1. Aproveitando o facto dos jogadores dos White Sox serem mal pagos pelo dono da equipa, um bookie conseguiu convencer oito deles a perderem de propósito, arrecadando, dessa forma uma fortuna com a vitória dos Reds.

O desempenho incompreensível dos jogadores na final, a súbita mudança de volumes de apostas a favor dos Reds (à medida que os rumores sobre um arranjinho subiam nos bastidores), o próprio resultado da final (os Reds foram campeões) e a forma relativamente despudorada como se falava, entre os jogadores da liga, sobre o negócio, levaram a que, durante o ano seguinte, o caso chegasse a público, desmascarado por jornalistas.

O escândalo foi colossal e chocou a nação, incrédula. Ficou conhecido como o escândalo dos Black Sox. Atingiu tal dimensão que os proprietários das equipas temeram pela sobrevivência do jogo e pela falência do negócio, e viram-se forçados a tomar medidas radicais. Tão importante como limpar o basebol era mostrar ao público que ele estava a ser limpo, e, naquele ponto, isso só podia ser conseguido de uma forma: entregando o seu policiamento a alguém com uma honra acima de qualquer suspeita.

Foi assim que surgiu, pela primeira vez no desporto americano, a figura do Comissário, um mandatário plenipotenciário eleito pelas próprias equipas mas com autoridade para executar todas e quaisquer acções que achasse necessárias para a regeneração do basebol. O eleito foi o juiz Kenesaw Mountain Landis, que poucos meses após tomar posse tomou a sua primeira grande decisão, banindo para o resto da vida do basebol profissional oito jogadores dos Chicago White Sox. Fê-lo mesmo após eles terem sido ilibados pelos tribunais civis por falta de provas, e explicou porquê: "Nenhuma pessoa que tome parte no arranjo do resultado de um jogo jamais voltará a jogar basebol nesta liga".

Os donos das equipas esperavam que, depois de eliminado o espectro das apostas ilegais, Landis assumisse um comportamento mais discreto. Enganaram-se. O comissário reinou sobre o basebol durante 25 anos mais, intervindo como quis sobre todos os assuntos que julgava relevantes para a imagem e a qualidade do basebol, e punindo sempre que achava necessário tanto as superestrelas como os donos das equipas - que lhe pagavam o salário, entenda-se.
No fim, Kenesaw Mountian Landis tinha definido o modelo da figura tutelar no desporto americano. Desde então, todas as ligas profissionais adoptaram a figura do Comissário, e foi sustentadas nessa hierarquia semi-ditatorial que têm ultrapassado, com bastante eficácia, os problemas que se colocam a cada desporto. Às vezes os Comissários não prestam, mas quando isso acontece não se muda de sistema, muda-se de Comissário ou mudam-se as leis - alterações supervisionadas pelo Comissário...

Ora, é precisamente neste ponto de degradação que se encontra o futebol português.

O nosso futebol tem uma particularidade que o distingue dos outros dentro da zona desenvolvida: todo o poder está centrado em três clubes. Uma característica a que eu chamo de trissomia - sim, o que eu quer dizer é precisamente isso - que leva a que todos os organismos futebolísticos estejam corrompidos por essa deficiência genética.

Em nenhum outro país isso acontece, mesmo naqueles em que existem clubes dominadores. Por exemplo, em Espanha, onde há dois clubes maiores que os outros, a importância regional e demográfica de emblemas menores, como o Atlético de Madrid, o Valência, o Sevilha, o Athletic Bilbao, o Deportivo e outros torna impossível que todo o poder seja condicionado por Real Madrid e Barcelona.

Em França já 17 equipas foram campeãs, sendo que o clube mais vezes vencedor, o Saint Ettiénne, já não o é há vinte e oito anos.
Em Itália, outras 17.
Na Alemanha, 18 (incluindo os da antiga República Democrática Alemã).
Na Inglaterra, 24.

Em qualquer um destes países, mesmo nos mais problemáticos - Espanha e Itália - qualquer manobra que pressuponha um atentado à igualdade formal de todas as equipas de primeira categoria é repudiada. É fácil, nestes casos (sobretudo nos do Norte europeu, onde se incluem os franceses), ser democrático, e funcionar num sistema colegial. A pressão da opinião pública, quando não o próprio pudor, impedem que os melhores sejam explicitamente favorecidos por quem escreve as regras.

Em Portugal, pelo contrário, só há três coisas que interessam: o Benfica, o Porto e o Sporting. E, entre essas três, só uma realmente conta: qual deles ganha.
Essa realidade obscurece todas as outras, incluindo a da legitimidade desportiva.

Como só há três tipos de adeptos (o benfiquista, o portista e o sportinguista), e como cada qual desconfia visceralmente do seu semelhante, parte-se do princípio que quem manda está vinculado a um (ou dois) dos três cromossomas, e que o seu único objectivo é manobrar o poder de forma a beneficiar esses clubes. Quando a balança do poder muda, mudam os escrúpulos mas não os métodos. É a mesma conversa, mas de trás para a frente e assim sucessivamente.
Dessa desconfiança (natural) resultam todos os restantes pecados - a manipulação da arbitragem, os esquemas que envolvem favores a jogadores, clubes e dirigentes, os castigos disciplinares, enfim, todas as formas de corrupção que se conhecem, e que ficam, afinal, legitimadas por uma justiça que é, simultaneamente (por mais ambíguo que isso possa parecer), enviesada mas certeira e incontestável: a de que uns se limitam a fazer aos outros aquilo que já lhes fizeram, porque agora podem e antes não podiam.

Assim se legitima a desonestidade, assumindo que pior do que sermos todos defraudados é só alguns de nós serem defraudados em benefício de outros. Ou comem todos ou não há moral.

A única forma de acabar com esta guerra civil é fazer o que fez o basebol americano: entregar todo o poder nas mãos de um ditador, chame-se ele comissário, cônsul ou presidente. O que ele tem de ter é poder ilimitado. Para castigar, reformular, decretar, legislar, para fazer o que achar melhor.

Se esse indivíduo, auxiliado por uma equipa pequena e especializada escolhida por ele, tiver um mandato de oito anos, e (sobretudo) se for escolhido por unanimidade por todos os clubes, conseguem-se as condições básicas para uma competição limpa, logo à partida porque nenhum dos três clubes grandes (os únicos que interessam, recorde-se) tem motivos para acreditar que será prejudicado, nem legitimidade para clamar contra a batota. Se isso acontecesse, aliás, o comissário teria a possibilidade de, arbitrariamente, castigar esse clube em vinte ou trinta por cento do seu orçamento anual - que é o que se deveria fazer sempre que um clube insinua que as regras estão a ser manipuladas, porque é isso que destrói, realmente, o futebol.

O que destrói o futebol não são os erros ou os acidentes: é a ideia que passa que os erros e os acidentes não são casuais mas premeditados. Essa ideia está de tal forma embutida no espírito das pessoas que estas já nem percebem que quando dizem "não nos deixaram ganhar" ou "tiraram-nos os três pontos" estão, na verdade, a dizer que os erros não foram erros mas atentados, e a atribuir intenção, premeditação. Sendo que o "alguém", obviamente, é o árbitro, e que o mandou lá para roubar.

A única coisa fundamental para salvar o futebol português é acabar com essa desconfiança.

A criação de um cargo que tivesse poderes para fazer o que entendesse necessário para isso, entregando a uma pessoa aquilo que deve ter rosto, personalidade e autoridade, e não a uma assembleia, ou a uma qualquer entidade impessoal, em que é fácil assacar responsabilidades porque ninguém realmente decide porque ninguém se empenha pessoalmente, é o passo fundamental para a credibilização do futebol.

Esse comissário exerceria funções durante oito anos, após os quais (e só então, sob pena de se lhe pagar uma indemnização insuportável para os clubes) o seu desempenho seria avaliado pelos clubes, escolhendo-se então outro, ou ficando com o mesmo - novamente, dependendo da unanimidade. O próprio comissário escolheria a sua equipa, para o aconselharem relativamente à disciplina, à melhoria do jogo, à parte económica, etc.

Seria difícil que o comissário escolhido fosse português, apesar de ser o ideal. Saberia do que estava a tratar. Por outro lado, um comissário estrangeiro, contratado pela Liga, garantiria outro nível de afastamento, que também seria importante.

Acima de tudo, uma mudança de paradigma proporcionaria aos clubes aquilo que é fundamental, e que separaria imediatamente o trigo do joio: a possibilidade de começar de novo, deixando que o passado aí ficasse, com os seus orgulhos e pecados. Quem não quisesse, à partida, jogar com as mesmas regras seria, naturalmente, culpado

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