terça-feira, 2 de junho de 2009

Se eu fosse eleito presidente do Benfica

Antes de mais nada, antes de ser eleito, fazia o que fazem todos: mentia para conseguir ser eleito.

Mas só mentiria porque os sócios do Benfica estão num ponto de tal desespero que só conseguem votar em quem lhes minta muito e descaradamente.

Depois disso, e vencendo, começava a fazer o que realmente queria. Punha o conta-quilómetros a zero, e começava pela equipa de futebol.

O mais depressa possível vendia os seguintes jogadores: Maxi Pereira, Sidnei, David Luiz, Luisão, Yebda, Di Maria e Cardozo. Daí resultariam receitas imediatas na ordem dos 55 a 60 milhões de euros, que abateria, imediatamente, no passivo sujeito a maiores juros. Em quatro anos de mandato isso significaria uma economia de cerca de cem milhões de euros, o equivalente a dez participações consecutivas na Liga dos Campeões – e isto não partindo de um princípio, altamente falível, de que nesses dez anos, com uma nova equipa e uma nova mentalidade e organização, não conseguisse pelo menos quatro participações na Liga dos Campeões - o que reduziria o passivo para valores irrisórios, já para não falar em ser campeão uma ou duas vezes, o que aumentaria as receitas para o dobro ou o triplo, tornando o clube, simplesmente, lucrativo.

Entre salários e prémios, durante o primeiro ano apenas, pouparia cerca de doze milhões de euros. Com esses doze milhões de euros, que seria o capital disponível para a reabilitação do plantel, faria duas coisas:

- apresentaria uma proposta de contrato de cinco anos a Carlos Queirós, um dos melhores treinadores do mundo e igualmente um dos maiores detectores de talentos a nível internacional, com uma cláusula de rescisão unilateral de vinte milhões de euros (só para ele não ficar com medo de ser despedido, porque o único mal do Queirós é quando fica nervoso e começa a vazar que nem uma gasosa). Se o Queirós não aceitasse, por achar que já não tinha vida para isso, ficava mesmo com o Diamantino ou com o João Alves, que estão mais do que aptos para a guerra, se calhar até mais que o Queirós. Também podia ir buscar o Cajuda, que daria uma perna para treinar o Benfica, nem que fosse em veteranos, e faria perfeitamente;

- pagaria os salários aos substitutos dos transferidos, substitutos esses que seriam escolhidos entre os actualmente emprestados, os juniores e um ou outro veterano da Liga com carácter e que sabem como se ganha jogos no campeonato. Seriam escolhidos segundo uma filosofia inversa à que actualmente domina o futebol do Benfica: em vez de fazer uma equipa para os jogadores traria jogadores para uma equipa, escolhidos pelo treinador para funcionarem como bloco, e não como um somatório de elementos. Não estou a falar só de portugueses. Entre os duzentos jogadores da Liga há elementos em qualidade suficiente para se fazer uma equipa competitiva. Uma equipa competitiva, no Benfica, ganha muito mais do que uma equipa competitiva no Guimarães. É a própria grandeza do clube que leva os jogadores a transcenderem-se.

Na verdade, só há uma razão para jogadores como Fábio Coentrão, Nuno Assis, Mantorras, Jorge Ribeiro, João Pereira e tantos, tantos outros, não se imporem no Benfica: é que ninguém espera que eles se imponham, a começar por eles próprios.

A mentalidade instituída é a de que não há problema em os jogadores jovens falharem no Benfica porque, em última análise, não se espera nada deles. Se resultar, resultou, se não resultar não interessa, porque também ninguém estava realmente à espera que resultasse. A ausência de pressão é o primeiro passo para o fracasso individual, e não tenho a mínima dúvida de que se o Benfica pura e simplesmente deixou de criar jogadores como Chalana, Diamantino, Nené, Álvaro, Veloso, Vítor Paneira, Alves, Humberto Coelho, Fonseca, Garrido, Hernâni, Vítor Baptista, Toni e muitos, muitos outros, que hoje seriam titulares indiscutíveis desta equipa, mesmo tratando-se em alguns casos de futebolistas apenas regulares, é porque mudou o paradigma.

Antes, um jogador sofria a pressão de ser uma solução, e falhava ou sucedia, mas quando sucedia ganhava-se um valor seguro mesmo que não se ganhasse uma estrela – quem é que não trocaria qualquer um dos últimos laterais-esquerdos do Benfica por um Veloso? Hoje, um jogador faz um jogo bom e sente-se realizado porque não se lhe exige mais. Segue-se a inconsistência própria de quem nada conquistou, a quem tudo foi facilitado. É a lei da vida, inapelável.

Com esta simples operação de reorientação de paradigma conseguir-se-ia o seguinte:

- o Benfica seria devolvido ao seu ambiente mais confortável, aquele em que se vê em inferioridade relativamente aos seus rivais e menosprezado pela opinião pública. Nesse contexto, em que nada tem a perder, o Benfica representa o maior perigo. Para que conste, na última vez que o Benfica iniciou um campeonato submetido ao ridículo e à menor das expectativas conseguiu o melhor resultado da sua História, vencendo por 6-3 em Alvalade, conquistando o campeonato e apenas sendo eliminado da Taça das Taças porque jogou com o Parma e perdeu com a máfia;

Foi com essa mentalidade de clube da ralé, aliás, que o Benfica se tornou o maior clube português. Para quem não sabe, no princípio do século XX o Sporting roubou ao Benfica os seus melhores jogadores e pensou-se que a equipa não sobreviveria. No ano seguinte o Benfica ganhou o campeonato de Lisboa ao Sporting.

Todas as grandes conquistas do Benfica foram resultado do processo natural da resposta adversidade e à inferioridade, até aos anos 70, altura em que o Benfica se tornou um clube fidalgo e começou a querer facilitar-se a vida, deixando de acreditar nas suas capacidades e abrindo a porta a jogadores estrangeiros. Desde que se afidalgou o Benfica só voltou a triunfar, e sem nunca ser claramente melhor que os outros, com Eriksson, o melhor treinador do mundo na sua época. Os restantes triunfos foram pírricos e apenas contrabalançaram pontualmente o poder crescente do Porto.

Como complemento e consequência disto…

-… o Benfica seria devolvido ao povo, que sempre viu nele o seu clube por se sentir nele representado, muito mais que pelas vitórias. De facto, costuma dizer-se que há mais benfiquistas porque houve tempos em que o Benfica ganhava sempre e por causa do Eusébio. Não é verdade. A implantação popular do Benfica é muito anterior a isso, e enraíza em factores muito mais psicossomáticos do que apenas as vitórias. O Benfica foi sempre o clube mais popular de Lisboa porque era nele que as pessoas se reviam. Enquanto o Sporting ostentava belos e aristocráticos nomes, dinheiro e, naturalmente, vitórias, o Benfica lutava com as armas que tinha à mão, geralmente jogadores que vinham da mais básica condição, brancos ou negros, bonitos ou feios, leais ou desleais. O Benfica era a equipa do povo porque o povo via nele os seus filhos ranhosos, que em equipa se tornavam fortes e, recorrendo por vezes não mais que ao simples desespero, conseguiam ir contrariando a superioridade económica do Sporting.

A vitória épica na Taça Latina, no Jamor, foi a súmula desse caminho. O triunfo nas Taças dos Campeões, frente a colossos cosmopolitas como o Barcelona e o Real Madrid, uma sequela. E nunca se deve menosprezar o comentário de Bella Guttmann quando, ao regressar ao Benfica e ver os carros de topo de gama no parque de estacionamento, vaticinou que aquela equipa nunca mais ganharia nada.

Por muito que isso faça confusão a alguns benfiquistas, o Benfica só será o Benfica enquanto jogar com ranho no nariz, mesmo que seja numa final da Liga dos Campeões;

- Dito isto, não tenho dúvida de que, se se seguisse esta política e se baixasse o preço dos bilhetes em dois ou três euros, fazendo acreditar aos sócios que todos seriam poucos para devolver a raça ao Benfica, não haveria um lugar vazio no Estádio da Luz. A capacidade de mobilização dos benfiquistas é imensa, e só é superada pela sua crença no impossível. Não só os benfiquistas encheriam o Estádio da Luz como esperariam, genuinamente, que a equipa ganhasse todos os jogos. Alguns seriam ganhos só por causa disso, pela mera pressão humana. Outros seriam perdidos, mas não sem um espírito de luta que fizesse os adeptos aplaudir a equipa, no fim, e voltar quinze dias depois. Porque o Benfica é assim. Mais do que a vitória (e é isso que Quique, por exemplo, não entendeu), os benfiquistas esperam raça. Sabem que, havendo raça, mais tarde ou mais cedo haverá sucesso, porque essa é a História Natural do clube;

- Para os jogadores portugueses o Benfica voltaria a ser o que sempre foi: a derradeira fonte de glória. Um limite acessível e ao seu alcance onde eles poderiam atingir o triunfo e o reconhecimento do seu povo, da sua nação. O seu clube natural. Um clube de âmbito nacional, popular e potencialmente dominador, capaz de se dar a toda a gente e de de todos receber, de aglutinar o sentir de um povo e de se sentir recompensado por isso. Um clube com alma. Um clube místico, de quem nada se espera e que tudo se propõe alcançar.

Penso que o momento mais subvalorizado na História do futebol português foi aquele em que o Benfica começou a contratar jogadores não-portugueses. E não o digo por xenofobia. Acho, aliás, que o espírito próprio do emigrante, que parte para outra vida e tem de lutar o dobro para ter sucesso, é potencialmente benéfico para o ADN de uma equipa. Mas, no caso do Benfica, isso resultou num empobrecimento do ADN. Resultou enquanto os estrangeiros que vieram eram inferiores aos portugueses, deixou de funcionar quando se mudou o princípio e se contratou Valdo e Mozer, duas estrelas que se tornaram nas estrelas da equipa. Nunca esquecerei, apesar de jovem, a luta interna movida por Diamantino contra Valdo. Era a própria génese benfiquista que se revoltava. E sei que Valdo era e sempre foi melhor profissional que Diamantino, e que qualquer treinador preferiria ter o brasileiro na sua equipa. Mas aquilo não era o Benfica. No Benfica havia choques de vedetas e dissensões ente jogadores, havia grupos e havia política, mas havia, sobretudo, uma unidade superior, uma coesão que resultava da homogeneidade nacional.

É um facto que o Benfica começou a perder a corrida para o Porto quando os jogadores portugueses do Porto se revelaram mais solidários e profissionais que os do Benfica, no tempo de Pedroto, mas perdeu decisivamente o comboio quando, em vez de mudar os métodos para tentar melhorar, mudou de paradigma e começou a olhar para o estrangeiro como solução para o problema. Não só nunca foi a solução como perdeu a sua grande vantagem: a identidade popular. Se tivesse de escolher um momento de viragem histórica determinante no Benfica escolheria a derrota de Fernando Martins com João Santos nas eleições para a presidência .

O Porto é, hoje, o clube do povo porque representa mais fielmente os valores populares (lealdade, unidade contra a adversidade, tradição). Os grandes símbolos do Porto nos últimos vinte anos são João Pinto, Fernando Couto, Jorge Costa, André, Paulinho Santos, Vítor Baía. Os dois últimos símbolos do Benfica são João Pinto, despedido, e Rui Costa, que jogou um ano mais dois de pré-reforma em quinze possíveis. Quem é que transporta, hoje, a alma do Benfica? Nuno Gomes? Luisão? Rúben Amorim? Absurdo.

A falta de fé condenou o Benfica ao degredo sentimental e ao fracasso desportivo. O Benfica é, acima de tudo, uma profissão de fé;

- Finalmente, o Benfica conseguiria um feito importantíssimo: regressaria ao jogo colectivo, por mera falta de opções. A ausência de individualidades obrigaria os jogadores a procurarem soluções ao lado, e a apresentarem soluções, a inventarem-nas. O jogo colectivo é o jogo de sucesso. É a base de tudo. A arte de encontrar uma equipa que funcione como equipa é a verdadeira pedra de toque no futebol. Há exemplos gritantes disso ao longo da história. O Benfica de Guttmann. Qualquer equipa alemã. O Porto de Artur Jorge. O Kiev de Lobanovsky, uma verdadeira máquina de jogar futebol.

Em futebol, invariavelmente, ganha a melhor equipa, e não o melhor conjunto de jogadores. As equipas históricas são aquelas, como o actual Barcelona, em que talentos excepcionais cedem ao colectivo. O princípio não é ter os jogadores, é ter uma equipa e ir metendo lá melhores jogadores. Veja-se nisso algo mais importante (eu disse mais importante) para o sucesso do Porto do que os quinhentinhos ou a fruta para dormir e ficar-se-á mais próximo da realidade.

E digo mais: duvido muito que uma equipa construída nestes moldes ficasse quatro anos seguidos abaixo do segundo lugar, e duvido ainda mais que, em dez anos, o Benfica não se tornasse novamente no clube mais forte de Portugal.

Esperem… Lembrei-me agora. Não posso ser presidente do Benfica. Este ano não tive dinheiro para pagar as quotas.

Este clube está mesmo amaldiçoado.

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