sexta-feira, 26 de junho de 2009

"Olha o coelhinho" e... Clic!

As pessoas têm bastante a tendência para desvalorizar os avançados. Um avançado está em permanente desvantagem em relação ao jogo.
Primeiro, tem desvantagem numérica. Na verdade, toda a estratégia ofensiva de uma equipa - a conjugação de acções de onze elementos, com oposição permanente, note-se - se resume a colocar os avançados em, pelo menos, igualdade numérica com os defesas.
Depois, tem uma desvantagem técnica evidente. Enquanto o avançado deve manter, tanto quanto possível o controlo da bola, porque geralmente só assim se consegue marcar golo, ao defesa basta evitar que o avançado controle a bola, o que é relativamente fácil pois basta um toque, um encosto, quando não apenas um passo em frente.
Isto porque o avançado também tem a desvantagem posicional. Não só enfrenta um adversário que tem o privilégio de ver a bola em todos os momentos como o espaço que tem para se movimentar é limitado, devido à lei do fora-de-jogo. Esta obriga a que, a cada jogada, o ataque consiga suplantar uma desvantagem territorial inicial, pois é a defesa que delimita a área jogável.

Um avançado tem menos tempo, menos espaço e menos bola que os restantes jogadores, e deles depende, em última análise, o sucesso da equipa.

Qualquer avançado que tenha tido conhecimento do montante que o Milan iria pagar por um defesa-esquerdo que só sabe correr ao lado de uma linha (15+x milhões de euros) tem legitimidade para se sentir insultado se o seu clube não pedir pelo menos o dobro pelo seu passe.
Um avançado deve ser mais valioso e mais bem pago do que um defesa pela mesma razão que um neurocirurgião deve ser mais bem pago que um dermatologista: porque, sendo ambos necessários, um (por ter estimado mais ou por ter mais talento) é, simplesmente, melhor que o outro.
Ver um defesa, qualquer defesa que não seja Baresi, filho de Baresi ou sobrinho de Baresi, ser comprado por mais de vinte milhões de euros, é um absurdo. Incluindo o Pepe, o Ricardo Carvalho, o Bruno Alves, o Luisão ou seja quem for.
Se um Cissokho vale 15 milhões, se um Bruno Alves vale 20, então peço desculpa mas um Cristiano Ronaldo ou um Messi valem, pelo menos, 150 milhões.

Encontro várias razões para um jogador se tornar avançado.
Há quem se torne avançado pela agressividade natural. A codícia. A fome de golo. São jogadores que, antes de pensarem, já estão a perseguir a baliza, mesmo não sendo muito bons tecnicamente. Há alguns casos evidentes. Lisandro López ou Derlei, por exemplo, em Portugal. David Villa. São o tipo de jogador que raramente marca um golo sem que a bola bata antes em alguém, parece sempre que vai aos repelões, que ele falhou o chuto, mas que, por tanto o perseguir, e de maneiras às vezes tão ansiosa, de vez em quando faz golos fenomenais, inacreditáveis. Estes são jogadores que vivem, sobretudo, à base da confiança, da moral, e que, quando acreditam que isso faz sentido, podem fazer cinquenta sprints por jogo, até caírem para o lado.

Depois, há quem seja avançado ou por ter uma técnica superior ou porque fisicamente tem características de avançado. Quando se juntam as duas virtudes aparecem os fenómenos. Ronaldo, por exemplo, é um velocista. Com o seu corpo só poderia ser avançado, e é tão bom tecnicamente que joga em qualquer posição do ataque.
Drogba, Eto'o, Ronaldo, por exemplo, são espécimes físicos avassaladores. Na sua melhor forma a sua capacidade física, só por si, não só eliminam a desvantagem em relação aos defesas como os colocam a eles a correr atrás do prejuízo.

Mas geralmente um avançado não reúne as duas vertentes de forma tão exuberante.
Cardozo só podia ser avançado. Fisicamente é relativamente fraco, tacticamente também, mas tecnicamente tem um bom remate - que é o gesto técnico mais difícil do futebol. Sem ele não seria futebolista.
Di Maria é uma espécie de Cristiano Ronaldo, só que mais fraco e pior tecnicamente. Fisicamente, jogando atrás do meio-campo seria um desastre.
Hulk é um avançado físico, apesar de poder vir a ser um dos melhores do mundo, tão bom quanto Eto'o ou Drogba. Mas ainda não. Tem, sobretudo, o corpo.
Messi é cento e cinquenta por cento técnica. Transborda técnica. É técnica a mais para um jogo só, sobretudo no drible, não tanto no passe ou no remate. Quando decair de forma (a parte física sustenta todo o jogador), vai parecer muito pior do que é, mas mesmo assim...

E depois há um terceiro tipo de jogador que tem de ser avançado, que eu confesso que é o meu preferido. É o jogador inteligente.
Estamos aqui a falar de inteligência futebolística - toda a componente do jogo que é intuída ou raciocinada.
São os jogadores que estão à frente do movimento do jogo. Jogam um ou dois momentos em antecipação aos adversários e, dessa forma, parecem criar espaços, inventar desmarcações, encontrar o jogador que ninguém tinha visto, às vezes até roubar a bola que se julgava segura pelo defesa, acreditar na jogada que todos julgavam perdida.

Liedson é um desses jogadores. Com aquele corpo só poderia trabalhar como caixa de supermercado, de facto. A sua técnica é boa, mas não mais que a de qualquer brasileiro médio. A bola, contudo, fala com ele, e o campo, para ele, tem a dimensão total, e não apenas o espaço entre linhas defensivas. O golo não se consegue esconder dele. Tem o gesto certo no momento certo, está sempre onde devia estar, não se adianta nem se atrasa. Por isso é, sem dúvida, o melhor jogador do campeonato português na actualidade.

Raul, do Real Madrid, é um desses jogadores. Já ganhou finais da Liga dos Campeões com golos inventados de um aparente nada. Nos tempos modernos descobriu, praticamente sozinho, um novo espaço dentro do campo, até aí inexplorado: a nuca do defesa. Provavelmente nunca houve ninguém a saquear o ângulo morto como ele. E assim, meio marreco, de pernas fininhas, jogo de cabeça apenas razoável e remate idem, se tornou no melhor marcador e num dos cinco maiores jogadores na história do maior clube do mundo.

Javier Saviola é um desses jogadores. Com duas diferenças substanciais em relação a Liedson e Raul, salvem-se as devidas proporções: em primeiro lugar, é melhor que qualquer um deles; em segundo, não teve a sorte na carreira que os outros dois tiveram - o que é fundamental no desempenho de um jogador.

Às vezes basta um treinador. No caso de Saviola foi Van Gaal. Um jogador como Saviola, entenda-se, não se enquadra em filosofias rígidas, como é a da escola holandesa, em que as peças se mexem muito, sim, mas sempre partindo de características específicas dos jogadores em cada posição. Na escola holandesa não há lugar para um avançado como Saviola. Ele nem é um flanqueador poderoso, rasgante e veloz (como Gullit, Stoichkov, Figo, Robben ou Beguiristain, por exemplo), nem um ponta-de-lança típico, capaz de suportar o corpo-a-corpo, de aparecer em potência e de finalizar de cabeça ou em força (Eto'o ou Ronaldo). É um jogador de toque, de espera, de pisar muito campo e controlar o tempo e o momento de soltar a bola, de escolher o passe e não de obedecer ao esquema que transporta a bola entre posições pré-estabelecidas. Não é jogador para receber a bola sempre através de determinado processo, é, antes, jogador de entender, a cada jogada, onde ela vai decidir cair - mas para isso tem de sair do lugar, o que, para os mestres da táctica, é algo de dramático.

Depois de Van Gaal, um destruidor nato de individualidades, o processo de banalização de Saviola (um dos dez melhores jogadores do mundo aos 21 anos, recorde-se) foi progressivo, e atendeu sempre ao padrão do grande-jogador-que-passa-a-suplente-num-colosso-mundial-por-falta-de-estatuto-e-que-por-isso-desaparece.

Há algo que me parece evidente, ainda que possa chocar: em termos de capacidade potencial, Saviola é a melhor contratação na história do Benfica, quer pelos valores, quer pelo momento, quer, e sobretudo isso, pelo talento do jogador. Estamos a falar de um futebolista de 27 anos que, no seu pico de forma, esteve entre os cinco melhores avançados do mundo. Não é um bom rapaz como Suazo, nem um eterno sobrevalorizado, como Aimar: é alguém que já atingiu um nível realmente elevado a nível mundial.

Não sabemos como Saviola vai chegar ao Benfica. Não sabemos se vai chegar irremediavelmente castrado na sua confiança, destruído por três anos quase sem jogar. Não sabemos se vem para o Benfica a pensar, como outros, que vai encontrar um pequeno clube de província sem grande pressão (falta de preparação psicológica que é o principal factor de falhanço nas contratações do clube).
Não sabemos se vem com fome de bola ou saciado com o dinheiro que já ganhou.
Não sabemos se conseguirá reeducar o corpo e a cabeça para ganhar depois de tanto banco. O futebolista é um animal de competição - depois de domesticado, perde o fulgor.

Mas há uma coisa que sei. Se Saviola for no Benfica aquilo que nasceu para ser em qualquer equipa onde jogue - ele e mais dez, e tem de ser mesmo assim para funcionar -; se, mesmo que passe dois ou três meses a recuperar o ritmo, ele chegar a Janeiro a jogar o seu futebol e a pautar o da equipa; se a sua chegada potenciar o valor de outros jogadores fundamentais, como Aimar ou Di Maria; em resumo, se a coisa correr bem, a contratação de Saviola pode ser o momento em que Benfica dá um pontapé no seu destino.

Acho que Patric não vai tirar o lugar a Maxi. Acho que Schaffer só joga até ao Natal. Acho que Ramires vai ter problemas em adaptar-se à Europa e ao violento campeonato português e que sai no fim da época sem nunca ter atingido grande nível, apesar de ter jogado relativamente bem e praticamente sempre como titular. E acho que Saviola, com um treinador inteligente como Jesus, vai revolucionar a equipa do Benfica.

Há uns tempos escrevi que ao actual Benfica o que faltava era um clique, que podia vir de muitas formas - um jogo especial, um jogador que se revela, um golo decisivo, uma ligação entre dois ou três jogadores. Saviola, Saviola mais Aimar, pode ser esse clique.

Também pode ser um falhanço, mas o papel dos dirigentes deve ser apenas um: continuar a dar à equipa possibilidades de ela se revelar. Num momento dramático para o Benfica, vendo falir uma equipa demasiado cara, Rui Costa teve, até agora, o seu melhor momento como dirigente. Um rasgo, vindo do nada. Uma jogada de mestre. Um passe à dez. Um clique?

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